Engordamos os outros para nos engordar 531t6c

Do texto de Shakespeare encontramos uma verdade: engordamos as outras criaturas para nos engordar, e nos engordamos para sermos comidos pelos vermes. Hoje, o grande escritor talvez modificasse Hamlet e desse outro sentido aos vermes que devoram a religiosidade sincera e realmente dependente do favor divino, legando s larvas o papel privilegiado no consumo religioso do mundo evanglico pentecostal. Provavelmente comearamos como o original. E no apenas para engordar as larvas que vo nos comer, no somente no finalzinho da vida de cada um. Pretendo no dar esse gostinho aos vermes: quero ser cremado.

Estive pensando sobre meus contatos com o evangelical way of life. Na verso ps-moderna, a graa deve ser obtida atravs de esforo poltico-eleitoral, financeiro, no importa de onde venha, se roubada do errio ou do fiel o qual nega comida aos filhos para entregar sua fezinha no altar pentecostal. De outro lado, parafernlias eletrnicas deslumbrantes, miditicas, artificialmente carismticas, atravs de trucagens do tipo me-engana-que-eu-gosto. E a turma gosta, mesmo. Para alguns, essa explorao no parece mais detestvel do que roubar de volta o que j fora roubado: a integridade do nome evanglico. Em cartaz: O Aprendiz de Feiticeiro - tudo que o fundamentalismo evanglico ensinou num curso intensivo da arte e magia do controle da massa pela ganncia, sem o truque da volta realidade.

Parece um tipo de conspirao contra envelhecidas concepes, revivals moralistas importados convidando cmplices desavisados para algum tipo de movimento evanglico. Quiseram implantar coisas como o Moral Majority (EUA), mas s deu certo na campanha contra a pedofilia, do pastor reeleito facilmente para mais oito anos no Senado. Apoio da massa evanglica, e o bloco cresceu muito, embora alvo preferencial na faxina do governo Dilma Rousseff. H ungidos do Senhor, laranjas do alto escalo evanglico, mamando feio no Ministrio dos Transportes (jornal O Globo, 11.07.2011: DNIT, rombo de 720 milhes).

Eleitores conservadores embarcam no moralismo inconsequente, apoiando fuses ultraconservadoras de partidos mesclados, mas saudosos do autoritarismo (PRONA & PL = PR). Corrupo rende dzimos e ofertas altas, das quais igrejas no abrem mo. Nessa sociedade, nada pode reivindicar iseno regra universal do descarte, e nada pode ter permisso de se tornar indesejvel. O protestantismo histrico, porm, sai liso e limpo da lama onde patinam igrejas neoevanglicas nos dias atuais. Faz justia sua herana tica. No se entregou ao mercado de mentiras.

Uma coisa, porm, certa: ao contrrio dos templos evanglicos high tech, onde pregam polticos corruptos a convite de pastores ricos, nos cemitrios no houve inovao. Tumbas e caixes de acrlico, lmpadas led ao invs de velas, no se popularizaram. A religiosidade espetaculosa a ao largo desses lugares, porque as sepulturas contrariam o que mais anunciam: destaque poltico, felicidade financeira e psicolgica eternas aos crentes que financiam ou se associam a empreendimentos eclesisticos recentes: se o cara no tem f, no enriquece, no se cura, no consegue nada (Silas Malafaia, A Gazeta 4.09.2011). Doentes terminais, deficientes fsicos, homens e mulheres no fim da idade outonal, so empecilhos s teses neoevanglicas. No so bons clientes para a religio da prosperidade. A razo bvia. O verdadeiro prmio nessa competio a garantia de felicidade e sair das fileiras dos derrotados. L, lugar de moradores de rua, prostitutas, minorias sexuais, trabalhadores de baixa qualificao; desventurados amorosos, mal casados, mal instalados, mal empregados.

Nos dois extremos da hierarquia da ganncia as pessoas so atormentadas pelo problema da identidade. Nessa viagem de negcios, da chegada partida est um deserto, um vazio, uma imensido, um amplo abismo, do qual s uns poucos mostrariam coragem de saltar fora por vontade prpria; foras centrfugas e centrpetas, de atrao e repulso, combinam para segurar inquietos e estancar a sada dos descontentes. Em graus variados, da imunidade vertigem; da adaptao tontura, pratica-se da arte da aquiescncia desorientao: falta de itinerrio e direo (Sygmunt Bauman).

A tipologia do baixo proletariado espiritual sugere que as fileiras se incham com rapidez e seus tormentos escorrem, com profuso, de cima para baixo, saturando camadas cada vez mais espessas da pirmide social. No meio, a classe mdia em ascenso adere religio da prosperidade, at para justificar-se. No vrtice, o alto clero neoevanglico, rico, milionrio, ostentando alto luxo nos costumes, conduzindo a manada inocente ao matadouro. Com salrios em torno dos R$ 100 mil, programas televisivos e de rdio, adornados com griffes internacionais, joias e relgios caros; manses e stios de R$ 10 milhes para cima (revista Isto . 09.09.2011), saem pela cidade para cumprir suas obrigaes de carros importados, blindados e escoltados por seguranas, ou voando em helicptero de R$ 2,5 milhes.

Mas que o observador no se engane. A riqueza que se ostenta tem retaguarda na histria da escola da religio da prosperidade (nos anos 1970, a Teologia da Ganncia veiculada com sucesso vertiginoso), na onda crescente do movimento evanglico (A. Gouvea Mendona). Mas, Valdomiro, o apstolo, egresso do grupo dos pastores pobres (que vo continuar pobres) treinados na IURD (Igreja Universal do Reino de Deus), buscou seu espao, retomando o seguimento afro-religioso, configurado no catolicismo popular. Enfim, o pentecostalismo quer afirmar a supremacia evanglica no Brasil (FGV Novo Mapa das Religies; IBGE - 2010). Mas o protestantismo original se levanta da lona, recupera-se, como diz Robinson Cavalcanti. Felizmente, no se entregou.