Conexo espetinho do ABC 6oq5b

Jorge Camargo

Maria do Carmo caixa de uma agncia bancria em So Bernardo h trs anos.

Todo mundo sabe que ser caixa uma atividade rotineira que envolve responsabilidade com tempo -- afinal quase sempre h gente esperando na fila -- e dinheiro -- no fim do dia o caixa tem que bater.

Embora bem jovem, Maria do Carmo d conta do recado enquanto sonha com dias melhores para sua famlia e uma oportunidade para subir na empresa.

O seu Virglio, como chamado na vizinhana at pelos garotos mais arteiros por conta do sorriso largo e da simpatia contagiante, est aposentado h quase doze anos. Como no tem mesmo muito o qu fazer, fica sentado em frente ao muro da casa inacabada de alvenaria que construiu com as prprias mos, fruto do esforo de trinta anos como metalrgico, acenando para os que am na rua, distribuindo palavras de estmulo e amizade: Bom dia, seu Pedro, tenha um timo dia de trabalho!; Dona Mrcia, o preo do tomate baixou. s ir barraca do Zeca.

Dia de pagamento de aposentados. Seu Virglio acorda tenso. No gosta de andar com dinheiro pela rua. s vezes enfrenta problemas no atendimento, filas no guich, a porta giratria e o vigia pedindo para que e por eles de novo... Porm, uma lembrana leve e agradvel, a palavra sempre adocicada da moa do caixa, a Maria do Carmo. Faa chuva ou faa sol, a menina do dinheiro, como ele a chama carinhosamente, recebe seus velhinhos com muito profissionalismo, verdade, pois so muitos em um nico dia, mas sempre encontra uma brecha para perguntar da famlia, falar sobre a reportagem principal da TV no domingo noite, comentar sobre o tempo -- assunto importante para quem chega a certa idade quando as doenas vo aparecendo e se intensificam com as variaes bruscas de temperatura.

Seu Virglio entra na agncia. Ela no parece to cheia. Os funcionrios esto todos concentrados em seus afazeres, mas no se furtam a responder, ainda que com uma rpida olhadela, ao aceno discreto, porm firme de suas mos enrugadas. Maria do Carmo o recebe com um sorriso de avenida, pergunta da consulta mdica da semana anterior enquanto a o carto no leitor tico e confere na tela o valor a ser sacado. Ele diz que ficou triste porque o mdico aumentou a dose de comprimidos para o controle de presso. Ela o encara com um olhar confiante e pede que no se preocupe, que logo os remdios faro efeito e na prxima consulta o mdico diminuir a dose, se Deus quiser.

Dinheiro e carto no bolso, seu Virglio agradece Maria do Carmo com os olhos marejados, se despede rapidamente -- h outros na fila -- e sai da agncia pensando em como ainda h gente boa nesse mundo. Gente jovem ainda, capaz de fazer bem o seu trabalho e dar ateno e carinho a gente mais vivida e experiente.

Nove da manh. Bem ali ao lado da agncia, seuNestor comea a assar os primeiros churrasquinhos dos muitos que espera vender at o fim do dia. Seu Virglio no hesita: compra o mais bem ado, faz meia-volta, a pela porta giratria, pelo vigia, fura a fila e oferece seu espetinho a Maria do Carmo em gesto de gratido e apreo.

Surpresa e lisonjeada, Maria do Carmo se levanta e cumprimenta seu Virglio com um beijo no rosto e um abrao apertado, para espanto de muitos na fila.

Todos voltam rotina at o prximo dia de pagamentos, at a prxima oportunidade de conexo entre mundo corporativo e gestos humanos transformadores, entre nmeros e emoes, entre estatsticas e afeto, que fazem a combinao perfeita entre aquele que serve (e ao mesmo tempo servido) e aquele que recebe.


Jorge Camargo msico, compositor, intrprete, poeta, tradutor e mestre em cincias da religio pela Universidade Mackenzie. www.jorgecamargo.com.br