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29 de maio de 2023
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Um chamado vida comum 52147

Artigo originalmente retirado da edio 401 da Revista Ultimato.

Por Prisca Lessa Mendona

preciso coragem para crer que uma vida pequena ainda uma vida significativa, e preciso graa para saber que o Senhor me v e me ama mesmo que eu no tenha feito nada poderoso ou ousado ou at mesmo interessante, e isto me basta. (Tish H. Warren)

Li esta singela frase h alguns anos no livro Simplesmente Crente, de Michael Horton, e hoje, ao revisit-la, percebo quanto ela revolucionria.

Por muito tempo vivi em busca de uma vida relevante para Deus. Cresci ouvindo que eu precisava viver uma vida radical por amor a Cristo. Uma vida radical envolvia abandonar tudo e servir a Deus em um lugar distante e viver uma espiritualidade fervilhante, marcada por experincias e testemunhos impactantes.

Mas, conforme os anos foram ando e me tornei adulta, percebi que esse padro de vida era, de fato, inatingvel; no pelo ato de fazer coisas significativas em si, mas por causa do conceito equivocado que eu havia elaborado sobre o que significa ser relevante aos olhos de Deus.

Para mim, uma vida relevante deveria ser freneticamente empolgante, cheia de feitos e experincias extraordinrias. Eu convivia com amigos que faziam parte de projetos que estavam impactando comunidades, viajando o mundo e fazendo coisas importantes, enquanto eu seguia na mesma, domingo aps domingo, na minha rotina de trabalho, estudos e igreja. Foi um longo processo at que eu pudesse compreender que uma vida pequena ainda uma vida significativa, independentemente de grandes ou pequenos feitos.

Acredito que muitos, assim como eu, cresceram ouvindo discursos parecidos com os que ouvi e com a viso de que uma vida comum menos desejvel e, at mesmo, menos espiritual.

Entre o sagrado e o secular

Quem ousaria colocar no currculo: sou uma pessoa ordinria ou sou um profissional ordinrio? Em s conscincia, ningum. Certamente encararamos como ofensa se algum nos definisse dessa maneira, pois algo ordinrio geralmente visto como desprezvel e inferior.

De modo geral, o uso da palavra ordinrio est relacionado ao que comum, costumeiro e assduo; h um outro sentido, tambm, em que a palavra est relacionada ao que modesto, pequeno, ou at mesmo, inferior.

Essa uma perspectiva do uso geral do termo; contudo, quando olhamos para a teologia da Reforma Protestante, encontramos um entendimento mais elevado acerca daquilo que ordinrio.

No catolicismo medieval, acreditava-se que Deus estava no monastrio, no no mercado; na missa, no no lar. Trocar a fralda de um beb, por exemplo, jamais poderia ser entendido como um ato bom ou espiritual.

Porm, a partir do entendimento que reformadores como Lutero e Calvino tiveram de que toda a vida vivida diante da face de Deus , ou-se a considerar sagrados no somente alguns aspectos da vida, mas o seu todo. Ento, a vida comum tambm ou a ser vista como sagrada.

Porm notemos que no foram os reformadores que tornaram sagradas as coisas ordinrias, mas o prprio Senhor e isso fica ainda mais claro quando, na encarnao, Deus andou neste mundo, de modo ordinariamente santo.

Entre a glria e a poeira

Em sua encarnao, Cristo viveu entre a glria e a poeira. O Deus extraordinrio fez-se ordinrio e habitou entre ns. Ele adentrou o mundo comum e se fez carne, carne comum.

Ele viveu entre a poeira das ruas de Nazar, o suor e a serragem numa carpintaria. Ele no julgou que ser grande era algo ao qual deveria apegar-se; em vez disso, esvaziou-se e viveu da maneira mais ordinria possvel at a morte, e morte de cruz.

Jesus sabia de seu chamado extraordinrio, mas ainda assim ele viveu de modo ordinrio neste mundo. Ele foi um homem comum; voc o veria no metr, voc o veria comprando gua na fila do nibus enquanto tambm estaria oferecendo gua viva vendedora ambulante; voc o veria tomando vinho e alegrando-se no casamento de um primo ou esperando o almoo ficar pronto na casa de amigos queridos; e em cada uma dessas circunstncias ordinrias ele estaria sendo plenamente Deus, plenamente extraordinrio.

O mais extraordinrio de todos os chamados neste mundo foi construdo sobre dias ordinrios, dias corriqueiros, de cansao e rotina

Em Cristo vemos a perfeita unidade entre o sagrado e o secular, entre as coisas ordinrias e as extraordinrias. Uma teologia do ordinrio nada mais do que um chamado vida comum, um chamado dirio a deixarmos de viver vidas quebradas e repartidas entre o sagrado e o secular.

Por meio da compreenso de que toda a vida vivida coram Deo, somos lembrados de que Deus est presente no cotidiano e, portanto, cada ato do ordinrio uma expresso de adorao a ele. Nosso lar, nosso trabalho e nossos trajetos so, tambm, nossos lugares de adorao.

A adorao pode ser bela no domingo, mas precisamos nos lembrar de que Deus o Senhor dos domingos e tambm das segundas-feiras.

A teologia do ordinrio um lembrete para o nosso corao vido por novidades, um lembrete de que em meio nossa rotina enfadonha que a graa de Deus nos forma.

Vidas ordinrias

Viver uma vida ordinria compreender que tudo o que fazemos para a glria de Deus. Que mesmo nossos menores atos so significativos quando apontados para ele. Que no precisamos fazer somente grandes coisas para que ele seja glorificado.

Deus pode ser glorificado quando finalmente decido encarar aquela pilha de roupas que precisam ser dobradas para servir minha famlia; quando assumo minhas responsabilidades e fao o que precisa ser feito, ainda que no seja algo prazeroso ou desejado.

Contudo, vale salientar que o chamado a uma vida ordinria no significa viver sem propsito ou sem aspiraes. O anseio pelo extraordinrio legtimo porque Deus nos criou para vivermos uma vida extraordinria nele.

H beleza no ordinrio. H beleza na nossa rotina diria, nas carinhas amassadas dos nossos filhos, no cheiro de caf sendo coado pela manh, nos ritmos da vida, sejam eles mais intensos ou tranquilos. H beleza em nosso trabalho, nos e-mails a serem respondidos, no cho a ser varrido, nos relatrios a serem entregues. H beleza.

Frestas para o extraordinrio

No fim das contas, essa vida comum que vivemos apenas uma maneira de nos fazer ansiar por algo extraordinrio, uma fresta para o extraordinrio.

em meio vida comum que Deus escolhe se revelar a ns, por meio da vida comum que descobrimos o anseio pelo extraordinrio, pela prpria eternidade.

O cansao, as alegrias, as tristezas, os pequenos prazeres dirios nos apontam para uma existncia maior e mais plena, para a qual fomos criados.

A vida comum um vislumbre da eternidade; de fato, uma frestinha pela qual enxergamos a Deus.

Vidas ordinrias na era do espetculo

Em um mundo onde as pessoas esto em busca de relevncia, a teologia do ordinrio nos leva a olharmos e a valorizarmos as coisas comuns, as conversas em volta da mesa, a vida real, que acontece fora dos stories, o servio igreja local e os relacionamentos imperfeitos e to necessrios. Precisamos resgatar essas pequenas coisas, porm, mais do que isso, precisamos dar a elas o seu verdadeiro significado.

Em uma era de espetculos, viver uma vida comum algo realmente radical.

Deus no desprezou este mundo comum nem nossa vida comum. A teologia do ordinrio um convite a olharmos para a nossa vida como um teatro da glria de Deus e para cada aspecto dela como uma oportunidade para refletir essa glria.

Deus o Deus de toda a criao. Ele Deus das segundas-feiras e tambm dos domingos. A humanidade foi criada imagem de Deus para refletir sua glria no mundo. No evangelho, somos restaurados nossa verdadeira humanidade. Somos renovados para que, mais uma vez, possamos refletir a glria de Deus no mundo de Deus.¹

Que possamos refletir a glria de Deus em nossa vida comum. H beleza no ordinrio, olhe pela fresta e voc a encontrar!

Nota

1. REEVES, Michael; CHESTER, Tim. Por que a Reforma ainda importante?. So Paulo: Editora Fiel, 2018.

Prisca Lessa Mendona, teloga, escritora e professora da Bblia, lder e fundadora do ministrio Teologia Para Mulheres (@teologiaparamulheres_), cujo propsito encorajar as mulheres a estudarem teologia, de maneira simples e vel. Instagram: @priscalessa.

+Espiritualidade +Vida Crist

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