Nossa sutil hipocrisia 45184w

Emil Brunner disse certa vez que, em sua caminhada histrica, a igreja oriunda da Reforma procura automaticamente o engessamento de uma crescente e perene institucionalizao, matando o carter orgnico, vivo e livre da igreja. Brunner identifica o incio da institucionalizao da igreja quando o apstolo Paulo normatiza o sacramento da Ceia em 1 Corntios 11. Discordo do telogo, pois creio que a semente dessa institucionalizao bem anterior, e pode ser encontrada nos embates travados entre os fariseus e o Crucificado.

Nesses embates, os fariseus, que eram professores da Lei, e que deveriam, por dever de ofcio, conhecer as Escrituras, as negam ao reclamarem contra a terrvel falha de Jesus em curar num sbado. Era s o que faltava!, diziam eles. Em sua sutil hipocrisia, os fariseus da poca de Jesus ficavam chateados com a falta de modos do Senhor, que comia sem lavar as mos, mas no se importaram em corromper um processo jurdico contra ele, ao comprar testemunhas e permitir correr o julgamento no Sindrio noite, o que era ilegal poca.

Hoje em dia, a igreja dita evanglica cada vez mais se engessa em seu institucionalismo ensimesmado, se aproximando do sistema religioso farisaico, cada vez mais se distancia da pura fonte de conhecimento de Deus, ou teologia, que Jesus, e cada vez mais vivencia uma hipocrisia de modo sutil.

Enchemos a boca ao afirmarmos que nossa salvao pela graa, mas enchemos as pessoas de cargos, sobrecargos e obrigaes, que devem ser desempenhados sem pestanejar, para provar que um dos nossos e merecedor da salvao.

Nos alegramos, e at mesmo nos orgulhamos, de nossa herana reformada. Mas, se verdade que muitos arminianos oram como calvinistas (Se for da tua vontade, Senhor...), tambm verdade que muitos calvinistas vivem sua vida como perfeitos agnsticos. Afinal, Deus distante, intangvel, inalcanvel, portanto vou viver minha vida do meu jeito, sem me importar com isso.

Prezamos a famlia. H at ministrios voltados para ela, e grande volume de literatura especializada no tema. Mas o nmero de divrcios aumenta, a quantidade de maus-tratos contra crianas se torna assustadora (sem contar os casos de abuso sexual cometidos dentro de famlias evanglicas, por pais, tios, avs ou padrastos), cada vez mais desordens de ordem sexual se tornam presentes, sem que isso seja tratado com coragem, discrio e amor. E sem falar tambm que, de todas as famlias da igreja, a do pastor a mais penalizada.

H muitas camisetas e adesivos de carro que dizem Jesus te ama, Deus amor, mas somos frios, distantes, individualistas e cruis. No conseguimos expressar esse amor ao homossexual, ao alcolatra, ao mendigo. Ou ao crente da igreja com uma teologia diferente da nossa, ou mesmo ao catlico.

Alis, somos muito ciosos em relao pureza da nossa devoo. Falamos contra a crescente mariolatria, como bem apontou Hans Kng, mas temos nossos dolos, nossos pequenos deuses, nossos altares de adorao abjeta. Enquanto muitos catlicos adoram uma figura bblica que foi instrumento da ao de Deus na histria, muitos de ns adoramos homens sem escrpulo, sem carter e com uma enorme voracidade por fama, poder e dinheiro. Talvez at mesmo por nos espelharmos neles.

Prezamos a transparncia, reclamamos at mesmo disso em relao aos governos. Mas no sabemos o que fazer com aqueles que decidem abrir seus coraes, expondo suas fraquezas e sua dependncia de Deus. Em um tempo de cultivo de heris gospel, no soa bem se mostrar frgil.

Prezamos o papel de lder, enquanto Jesus prezava a atitude de servo. Prezamos a vitria e a intrepidez, mas Jesus morreu como um bandido fora da cidade santa, abandonado por todos. Nos espelhamos na esperteza relatada em livros sobre liderana, mas Jesus nos incita simplicidade infantil. Buscamos metodologias para a igreja crescer, mas nos esquecemos que quem enche a igreja o Esprito, e qualquer outro crescimento produzido fora dele puro inchao.

Em tempos em que as tcnicas ditam as normas (como bem disse Won Sul Lee), anacrnico ser fiel a algum que no se v e que nem sempre responde como queremos. Mas somos chamados a este anacronismo, somos chamados para vivermos, como diz o antigo hino, para o Deus dos antigos, o Deus que nos limpa por dentro e nos remove a sutil hipocrisia dos fariseus modernos. O Deus que nos quer ntegros e transparentes. O Deus que nos quer santos.