O presbiteriano que virou o protestantismo pelo avesso 2f6o12

Derval Dasilio

Para a Amrica Latina, o Esprito de Deus escolheu Richard Shaull. A revoluo teolgica no protestantismo brasileiro se inicia. Em 1966, Shaull foi removido do Brasil pela Misso Central, ou Misso Presbiteriana no Brasil, ambas remanescentes da Foreign Missions, que o trouxe para a Amrica do Sul em 1942, sob a influncia do extraordinrio John Mackay. Mas nossa histria procura outro ambiente, se bem que esquecido. Meu primeiro contato com o ministrio de Shaull aconteceu enquanto trabalhava numa siderrgica recm-fundada em Ipatinga (MG). Um ex-seminarista de Campinas, IPB, antes do Golpe de 31 de maro, falava-me de um pastor que fermentava a educao teolgica presbiteriana na direo de uma revoluo crist teolgica no Brasil. Era Richard Shaull.

Comendo tutu com torresmo e outras coisas gostosas, cometendo pecados imperdoveis contra o calvinismo dogmtico ao sabor da culinria mineira, fui ler Alternativa ao Desespero, que ainda encontro nas mos de muitos jovens hoje. O que mais marcou minha memria de jovem batista prisioneiro do fundamentalismo evanglico foram as greves contra o capital estrangeiro na Usiminas antes do golpe militar de 1964. Vi colegas assassinados ou presos sob o pretexto de manuteno da segurana da siderrgica mas eram lderes operrios militantes, to somente. Vi trabalhadores fazendo piquete nos portes da fbrica, e os vi mortos a rajadas de metralhadora, s dezenas, sem uma chave de fenda para defenderem-se.

Lembro-me dos assassinatos de sindicalistas dentro das cercas de ao da siderrgica. Eu era apenas um garoto latino-americano crente, alienado, perplexo diante de algo que no era explicado dentro da igreja. Diziam-me que f e poltica nada tinham a ver com a igreja; que o problema da salvao resume-se na luta contra um mundo maligno sobrenatural extraterreno. A converso abstrata, exigida em todos os dias, livrar-me-ia do inferno, do diabo e seus anjos. Os fatos, porm, revelavam-me outra coisa: o fogo das fornalhas na siderrgica era insignificante diante do inferno e dos demnios da ditadura militar apoiada pela sociedade civil brasileira, a partir dos bem-postos e privilegiados. Minha experincia, numa palavra: perplexidade. O protestantismo estava a seu lado! Deu no Brasil Presbiteriano...

Foi assim que descobri Richard Shaull. Minha f sobreviveu. Jesus Cristo fala aos oprimidos, disse-me o pastor. Abandonei meu emprego, fui para o seminrio estudar teologia com presbiterianos. E o que descubro? A relevncia da f diante da poltica, economia e sociedade corrompidas. Compromisso cristo diante de profundas desigualdades existentes, no Brasil e Amrica Latina. Tenho at hoje exemplares de livros teolgicos desse tempo: Amrica Hoy, tica en el Contexto Cristiano, e depois Pedagogia do Oprimido, de Paulo Freire, entre tantos que Shaull nos ensinou a ler. No fui diretamente seu aluno, pois ele fora expulso do Brasil. Mas fui instrudo por seus discpulos ou companheiros. Joaquim Beato, Claude Labrunie, Breno Shumann ensinaram-me a ler a Bblia em contexto tico, poltico e social. Jovens pastores como Rubem Alves e Jacy Maraschin aram por l, ensinando. E Jaime Wright nos apoiando. Estudos Brasileiros, Antropologia Cultural, Teologia Ecumnica e Poltica, inovaes no ensino teolgico, eram ministrados por Waldo Csar, Jether Ramalho, Esdras Borges. Todos discpulos de Richard Shaull.

A juventude protestante brasileira foi tomada pela hermenutica libertria: teologia da libertao. Mas a j era o tempo de Medelln e Puebla, dentro do catolicismo. Shaull tambm no permitiu a invaso da aculturao teolgica europeia. Interessava-lhe, sim, Karl Barth, estudioso dos dogmas eclesisticos, e Bonhoeffer, o mrtir da igreja crist engajada sob o totalitarismo nazista. A teologia dentro das grades clamava por uma teologia da libertao.

Pois bem, Shaull voltou para a aula inaugural da Faculdade de Teologia que recebeu seu nome em 2002. Sua coragem proftica nos contagiava com o ltimo curso ministrado em vida, acompanhado pelo fiel editor e pesquisador de sua teologia, Waldo Csar. O protestantismo brasileiro diante do desafio pentecostal: o reino de Deus pelo oprimido, a massa do cristianismo pobre, latino-americano. O protestantismo histrico ainda busca as elites, desde que chegou. Ignora o pobre.

Richard Shaull, na grande caminhada teolgica, deixou-me algumas frases maravilhosas no ltimo e-mail que trocamos antes de falecer (outubro de 2002). Uso a frase do neto de Hemingway: Ele ainda toca as pessoas de um modo que a maioria dos escritores apenas sonham fazer. O que a teologia deve a esse gigante espiritual ainda est por ser dito. Ele ensinou a perguntar: Onde te vimos, Jesus">Twitter!