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07 de dezembro de 2023
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Matrix, ceticismo e conhecimento de Deus 1z1c3o
Uma breve introduo epistemologia reformada em seu contexto
Por Davi Bastos
No filme Matrix, Neo confrontado com a dura realidade de que quase tudo o que acreditava era ilusrio. Em um cenrio ps-apocalptico, as mquinas tomaram o controle do mundo e escravizaram a humanidade para gerar energia, mantendo os humanos vivos em cpsulas, provendo-lhes alimento e nutrientes. Atravs de impulsos gerados no crebro por meio de alguns cabos, elas criavam nas mentes humanas a iluso de uma realidade, a impresso de que viviam em um mundo pr-apocalptico. Dentro dessa realidade computacional, a matrix, Neo acreditava ter uma casa, vestir roupas, beber gua e no ter nenhum cabo em seu crebro. Tudo o que ele via, contudo, era induzido em sua mente pelas mquinas. Na verdade, ele nunca bebia gua, nunca usava roupas e no havia casa alguma. Era tudo uma iluso.
Claro, Neo ainda conhecia muitas verdades. Ele sabia, por exemplo, que 2 + 2 = 4, e isso de fato era verdadeiro, no uma mera iluso. Ele acreditava ter braos e pernas, e, de fato, as tinha (embora no as controlasse para alm da iluso). E ele acreditava que as outras pessoas que via tinham mentes, com pensamentos prprios, e elas realmente tinham embora todas estivessem igualmente participando da iluso da matrix.
A epistemologia o campo da filosofia que investiga, entre outras coisas, o que o conhecimento e como podemos saber certas coisas. Neo, por exemplo, no sabia que a parede de sua casa era feita de concreto, porque, na verdade, ele no tinha casa alguma. Para que ele ou qualquer pessoa saiba de algo, preciso que esse algo seja verdadeiro. impossvel saber que o Papai Noel engordou, porque o Papai Noel no existe. (Mas possvel saber que o Papai Noel no existe, porque isso verdadeiro.).
Mas ser que Neo sabia que tinha braos e pernas? Afinal, ele nunca havia visto seus braos e pernas reais, apenas suas verses ilusrias na matrix. Ele nunca havia usado seus braos e suas pernas reais, apenas controlava suas contrapartes computacionais. Acaso no seria possvel que ele no tivesse braos e pernas reais? Talvez ele nem sequer tivesse um corpo para alm do crebro: ele poderia ser um crebro em uma cuba, dentro de um laboratrio avanado. Talvez estivesse sonhando. Ou, talvez, ele fosse algo de natureza completamente distinta, uma alma ou algum tipo de conscincia no corprea, e possivelmente nunca tivesse tido qualquer parte material em sua constituio e sua natureza. Neste caso, pode ser que estivesse sendo iludido por algum impulso do mundo no material (um fantasma ou um demnio enganador, por exemplo) a pensar que tivesse um corpo.
Desde Ren Descartes, essas questes tm recebido imensa ateno na epistemologia. As instncias mais conhecidas e influentes dos argumentos do sonho e do demnio enganador esto nas Meditaes sobre a filosofia primeira, tambm conhecidas como Meditaes metafsicas. Descartes, ali, defende no apenas que toda a realidade sensria poderia ser falsa, mas at mesmo as nossas convices matemticas poderiam ser fundadas nos poderes enganosos de um gnio maligno.
Como os filsofos podem responder a esses desafios cticos? A primeira forma de responder afirmar que, embora os cenrios cticos sejam possveis, eles no so plausveis. Talvez eu no tenha certeza de que no seja um crebro em uma cuba (cenrio ctico proposto por Hilary Putnam), mas tenho muitos mais motivos para crer que no estou em tal condio e que tenho, sim, um corpo. Alm disso, parece-me muito mais prudente agir como se eu pudesse me ferir e me machucar ao colocar a mo no fogo ou tentar segurar um tiro do que assumir que tudo parte de um experimento ilusrio e que nada de fato pode me ferir.
A epistemologia reformada surgiu em um contexto filosfico que estava preocupado com o ceticismo e suas consequncias. O que os epistemlogos queriam, nesse perodo, era uma boa teoria da racionalidade de nossas crenas. Ainda que eu no tenha certeza de que no estou vivendo em uma matrix, racional para mim acreditar que no estou vivendo em uma matrix. Segundo a vasta maioria, certeza plena no um requisito para a racionalidade.
Dessa forma, os epistemlogos mapearam vrias formas de entender como podemos acreditar em certas coisas (ou em certas proposies) plausvel e racionalmente. Por exemplo, tenho motivos para acreditar que tenho um corpo porque posso ver minhas mos, senti-las, control-las etc. possvel que isso seja uma iluso, mas no tenho nenhum bom motivo para crer que uma iluso. A consistncia dessas crenas e sua utilidade suficiente para a racionalidade. No devemos aceitar critrios inalcanveis para considerar algo racional.
Assim, o conhecimento ou a ser entendido como algo que algum acredita verdadeiramente (se for falso, no conhecimento; lembre-se de o Papai Noel engordou) e acredita verdadeiramente de forma correta. O que seria essa forma correta? Muitos diriam que a forma correta de acreditar verdadeiramente acreditar com base em motivos ou justificao. As fontes de justificao so a percepo (viso, olfato, tato etc.), o testemunho (algum confivel me contou), o raciocnio (isso infervel a partir de algo que eu j acredito racionalmente), a memria (uma conscincia clara de que eu acreditava racionalmente nisso no ado) etc. Dessa forma, para que um sujeito tenha conhecimento de uma proposio, preciso que ele acredite em tal proposio, que tal proposio seja verdadeira e que ele acredite nela com base em um bom motivo, isto , acredite justificadamente.
Essa proposta ficou conhecida como anlise tripartite do conhecimento: o conhecimento uma crena verdadeira justificada. Edmund Gettier, contudo, argumentou que possvel ter uma crena verdadeira justificada de que uma proposio o caso e, ainda assim, no ter conhecimento de que tal proposio o caso (veja seu Is justified true belief knowledge?). Por exemplo, suponha que s 11h Elias forme uma crena de que so 11h porque viu um relgio marcando 11h. Mas suponha que aquele relgio esteja sem pilhas, e esteja parado marcando 11h. A crena de Elias verdadeira, e ele possui uma boa fonte de justificao, baseada em sua percepo visual do relgio marcando 11h e no raciocnio de que relgios marcam horas confiavelmente na maior parte do tempo. Gettier defende que a crena de Elias verdadeira e justificada, mas no conhecimento porque, se ele tivesse olhado para o relgio em qualquer outro minuto, a sua crena sobre que horas so no seria verdadeira.
Dessa forma, os epistemlogos aram a buscar uma forma mais robusta de conectar a justificao com a crena para que algo constitua conhecimento. No se pode exigir demais, ou no teremos resposta para os desafios cticos. Mas exigir de menos leva a considerar como conhecimento diversos casos como os de Gettier, em que a crena verdadeira por pura sorte. Como eliminar a sorte?
Dentre as diversas propostas, surgiu o externalismo, e, concomitantemente, a epistemologia reformada. O externalismo afirma que um sujeito como Elias pode formar crenas verdadeiras sem saber que suas crenas so verdadeiras, desde que o processo que gerou suas crenas seja legtimo. Assim, quando uma criana forma a crena de que amanh o sol ir nascer porque ele sempre nasce, ela est se valendo de um raciocnio indutivo, mesmo que ela no saiba nada sobre induo. Sendo a induo um mecanismo legtimo de produo de conhecimento, mesmo que a criana no tenha conscincia de que est empregando uma inferncia indutiva, sua crena verdadeira formada por um mecanismo confivel e constitui, portanto, conhecimento.
O que a epistemologia reformada defende que o mesmo se aplica crena em Deus. Para os epistemlogos reformados, a crena em Deus (em muitos casos) natural: ela formada por (ou aceita em virtude de) um mecanismo legtimo, confivel e natural. Assim como temos uma disposio natural ao raciocnio indutivo, temos uma disposio natural para a crena em entidades transcendentes e at mesmo para a crena em Deus.

Muitos ateus (como Daniel Dennett, por exemplo) defendem que a crena religiosa fruto de mecanismos naturais no crebro, faculdades ou mdulos cognitivos, talvez, que nos levam a crer em divindades. Para eles, essas faculdades so um subproduto da evoluo, fruto de um dispositivo de detectar outras mentes. Para que pudssemos acasalar e sobreviver, era til que consegussemos identificar nossos semelhantes: saber que algo ou algum era um ser vivo com uma mente. Para evitar perigos como animais selvagens que atacam durante a noite, era til que consegussemos identificar que certos movimentos na noite indicam a proximidade de um animal perigoso. Contudo, como esse dispositivo de perceber agentes muito sensvel, ele nos levou a desenvolver a crena no sobrenatural: barulhos noturnos que no eram causados por nenhum animal s poderiam ser causados por outro tipo de agentes: espritos, fantasmas ou demnios. Dessa forma, segundo eles, surgiu a crena religiosa que evoluiu at a crena em um nico Deus.
A epistemologia reformada concorda que a crena em Deus (em muitos casos) natural e formada por um mecanismo no crebro. Mas ela defende, em contraste a Dennett e a outros atestas, que esse mecanismo confivel. Por que esse mecanismo seria confivel? Porque o prprio Deus, ao criar suas criaturas, teria o interesse de se manifestar a elas. Deus quer ser conhecido, ainda que no de forma absolutamente clara e indistinta (como argumentam vrios filsofos), e quer ser adorado. Para isso, Deus dotou (em um sentido compatvel com diferentes posies acerca da doutrina da criao) os seres humanos com uma faculdade cognitiva ou algum mecanismo epistmico para ou (i) desenvolver a crena no transcendente e/ou em Deus, ou (ii) aceitar com mais facilidade a crena no transcendente e/ou em Deus, ou (iii) conseguir compreender a crena no transcendente e/ou em Deus. Essa capacidade ou disposio, portanto, serve para que possamos ter conhecimento de Deus seja nos levando a crer nele, seja nos tornando mais propensos a crer nele, seja nos permitindo ao menos compreender que possa haver algo como ele.
Os pioneiros dessa proposta no sculo 20 foram Nicholas Wolterstorff e Alvin Plantinga, ambos filsofos cristos da tradio reformada. Eles traaram a herana desse pensamento ao prprio Joo Calvino (sculo 16) e ao filsofo e pastor presbiteriano Thomas Reid (sculo 18). Calvino fala de um sensus divinitatis um sentido da divindade presente em todos os homens que os leva adorao, sendo tambm responsvel pelo surgimento de todas as religies (Institutas, cap. 3, 1). Thomas Reid foi um defensor da ideia de que nossas faculdades cognitivas devem ser tomadas como confiveis at que se prove que no o so (em oposio ao pensamento de Descartes, que sugeriu que elas no seriam realmente confiveis se pudssemos imaginar cenrios possveis em que elas so enganosas), embora no tenha explicitamente defendido uma faculdade cognitiva que gere o conhecimento do transcendente e/ou de Deus.
A terminologia de Plantinga a mais influente na epistemologia reformada. Para ele, a crena em Deus uma crena bsica, assim como as crenas do senso comum de Reid (crenas de que o Sol nascer no futuro, sobre a existncia de outras mentes, a crena de que 2 + 2 = 4, e assim por diante). Crenas bsicas so legtimas se forem formadas por um aparato cognitivo confivel que esteja funcionando apropriadamente, o que inclui estar em um ambiente apropriado para o seu funcionamento. Uma crena desse tipo provida de aval (ou avalizada, ou ainda, garantida, a depender da traduo de warrant, no original) por ter o que necessrio para que uma crena verdadeira constitua conhecimento. Assim, para Plantinga, conhecimento crena verdadeira avalizada, e aval concedido a uma crena que foi formada por um mecanismo confivel por meio de um processo de funcionamento adequado daquele mecanismo. A crena em Deus, portanto, seria avalizada porque o prprio Deus teria criado o sensus divinitatis para possibilitar a crena em sua existncia, de forma que esse mecanismo cognitivo poderia funcionar apropriadamente e gerar uma crena bsica. Dessa forma, mesmo que algum testa no tenha nenhum argumento a oferecer em favor de sua crena na existncia de Deus, essa crena pode ser racional, dado que crenas bsicas no dependem de argumentos ou evidncias para serem racionais.
Plantinga, contudo, vai alm em seu projeto, propondo que a crena crist em especfico tambm provida de aval (veja a obra Crena crist avalizada). Para ele, o sensus divinitatis no a histria completa sobre o conhecimento humano de Deus. A partir da Queda da raa humana, nosso sensus divinitatis bloqueado por um novo mecanismo cognitivo, o pecado (ou os efeitos noticos do pecado), que impedem o funcionamento apropriado do sensus divinitatis e, assim, afastam a mente humana do conhecimento de Deus. Apenas por intermdio da ao do testemunho interno do Esprito Santo possvel superar (ainda que parcialmente) os efeitos do pecado e atingir o conhecimento salvfico de Deus. Dessa forma, o conhecimento de Deus continua sendo gerado por um mecanismo confivel e de forma bsica (atravs do testemunho do Esprito Santo), e a crena crist de forma geral (ao menos a crena gerada pelo testemunho do Esprito) provida de aval.
Os desdobramentos posteriores da epistemologia reformada envolvem principalmente a investigao emprica (por meio das cincias cognitivas) da existncia de mecanismos cognitivos que possam fazer o papel requerido pelo sensus divinitatis. Kelly James Clark e Justin Barrett, por exemplo, em seu A epistemologia religiosa de Thomas Reid e a cincia cognitiva da religio, argumentaram que o dispositivo hipersensvel de deteco de agncia (mencionado anteriormente) possui esse papel de gerar conhecimento do divino de forma bsica e avalizada. H alguma evidncia, tambm, de que crianas bem novas (normalmente aos trs anos de idade) tenham a tendncia a crer que seus pais e outros adultos so oniscientes, e tenham, portanto, facilidade de compreender ou acreditar na existncia de um ser onisciente.
Os maiores desafios para a epistemologia reformada so realmente mostrar que h tal coisa como o sensus divinitatis e explicar por que a crena testa e a crena crist parecem mais ser formadas pela transmisso de uma tradio do que ser formadas por um mecanismo de formao de crenas bsicas (como o caso com a crena em outras mentes). H muitas culturas com crenas religiosas muito diferentes, e h uma quantidade significativa de ateus. A epistemologia reformada precisa mostrar por que essas pessoas, que no so estpidas ou irracionais, no acreditam em Deus. Se a resposta for que o mecanismo do pecado afeta o mecanismo do sensus divinitatis, se esperaria que fosse possvel encontrar tais mecanismos em conflito no crebro algo que ainda no foi feito.
Em resumo, a epistemologia investiga como podemos ter conhecimento, isto , como podemos saber coisas. Os desafios cticos nos mostram que no podemos ter critrios muito exigentes para o conhecimento, e o problema de Gettier, por outro lado, revela que critrios pouco exigentes tambm geram problemas. Uma proposta de meio termo o externalismo, que defende que a racionalidade alcanada quando uma crena produzida de forma apropriada por um mecanismo confivel ainda que o sujeito no tenha conscincia de argumentos ou evidncias para as suas crenas. A epistemologia reformada, de forma similar, argumenta que o conhecimento de Deus e mesmo a crena crist so produzidas por um mecanismo confivel e bsico, de modo que no preciso apresentar argumentos ou evidncias para se ter uma crena racional em Deus.
Nota
1. Para uma crtica viso de que Reid um precursor da epistemologia reformada, ver: Ryan Nichols e Robert Callergrd, Thomas Reid on Reidian Religious Belief Forming Faculties, Modern Schoolman, v. 88, pp. 317335, 2011.
Publicado originalmente no site Unus Mundus. Reproduzido com permisso.
REVISTA ULTIMATO | ENVELHECEMOS: A ARTE DE CONTINUAR
No so todos os que alcanam a longevidade. Precisamos assimilar que a velhice uma estao to natural quanto s estaes do ano e que cada fase da vida tem suas especificidades e belezas prprias. Ao publicar esta matria de capa, Ultimato deseja encorajar um novo olhar para a velhice: um novo olhar dos idosos para eles mesmos e um novo olhar para os idosos por parte da igreja e da sociedade.
disso que trata a matria de capa da edio 404 da revista Ultimato. Para , clique aqui.
Saiba mais:
Cincia e Religio - so compatveis?, Alvin Plantinga e Daniel C. Dennett
Filosofia da Religio Uma Introduo, William L. Rowe
A Penltima Curiosidade, Roger Wagner e Andrew Briggs
Deus Em Questo - C. S. Lewis e Freud debatem Deus, amor, sexo e o sentido da vida, Armand M. Nicholi
Por Davi Bastos

Claro, Neo ainda conhecia muitas verdades. Ele sabia, por exemplo, que 2 + 2 = 4, e isso de fato era verdadeiro, no uma mera iluso. Ele acreditava ter braos e pernas, e, de fato, as tinha (embora no as controlasse para alm da iluso). E ele acreditava que as outras pessoas que via tinham mentes, com pensamentos prprios, e elas realmente tinham embora todas estivessem igualmente participando da iluso da matrix.
A epistemologia o campo da filosofia que investiga, entre outras coisas, o que o conhecimento e como podemos saber certas coisas. Neo, por exemplo, no sabia que a parede de sua casa era feita de concreto, porque, na verdade, ele no tinha casa alguma. Para que ele ou qualquer pessoa saiba de algo, preciso que esse algo seja verdadeiro. impossvel saber que o Papai Noel engordou, porque o Papai Noel no existe. (Mas possvel saber que o Papai Noel no existe, porque isso verdadeiro.).
Mas ser que Neo sabia que tinha braos e pernas? Afinal, ele nunca havia visto seus braos e pernas reais, apenas suas verses ilusrias na matrix. Ele nunca havia usado seus braos e suas pernas reais, apenas controlava suas contrapartes computacionais. Acaso no seria possvel que ele no tivesse braos e pernas reais? Talvez ele nem sequer tivesse um corpo para alm do crebro: ele poderia ser um crebro em uma cuba, dentro de um laboratrio avanado. Talvez estivesse sonhando. Ou, talvez, ele fosse algo de natureza completamente distinta, uma alma ou algum tipo de conscincia no corprea, e possivelmente nunca tivesse tido qualquer parte material em sua constituio e sua natureza. Neste caso, pode ser que estivesse sendo iludido por algum impulso do mundo no material (um fantasma ou um demnio enganador, por exemplo) a pensar que tivesse um corpo.
Desde Ren Descartes, essas questes tm recebido imensa ateno na epistemologia. As instncias mais conhecidas e influentes dos argumentos do sonho e do demnio enganador esto nas Meditaes sobre a filosofia primeira, tambm conhecidas como Meditaes metafsicas. Descartes, ali, defende no apenas que toda a realidade sensria poderia ser falsa, mas at mesmo as nossas convices matemticas poderiam ser fundadas nos poderes enganosos de um gnio maligno.
Como os filsofos podem responder a esses desafios cticos? A primeira forma de responder afirmar que, embora os cenrios cticos sejam possveis, eles no so plausveis. Talvez eu no tenha certeza de que no seja um crebro em uma cuba (cenrio ctico proposto por Hilary Putnam), mas tenho muitos mais motivos para crer que no estou em tal condio e que tenho, sim, um corpo. Alm disso, parece-me muito mais prudente agir como se eu pudesse me ferir e me machucar ao colocar a mo no fogo ou tentar segurar um tiro do que assumir que tudo parte de um experimento ilusrio e que nada de fato pode me ferir.
A epistemologia reformada surgiu em um contexto filosfico que estava preocupado com o ceticismo e suas consequncias. O que os epistemlogos queriam, nesse perodo, era uma boa teoria da racionalidade de nossas crenas. Ainda que eu no tenha certeza de que no estou vivendo em uma matrix, racional para mim acreditar que no estou vivendo em uma matrix. Segundo a vasta maioria, certeza plena no um requisito para a racionalidade.
Dessa forma, os epistemlogos mapearam vrias formas de entender como podemos acreditar em certas coisas (ou em certas proposies) plausvel e racionalmente. Por exemplo, tenho motivos para acreditar que tenho um corpo porque posso ver minhas mos, senti-las, control-las etc. possvel que isso seja uma iluso, mas no tenho nenhum bom motivo para crer que uma iluso. A consistncia dessas crenas e sua utilidade suficiente para a racionalidade. No devemos aceitar critrios inalcanveis para considerar algo racional.
Assim, o conhecimento ou a ser entendido como algo que algum acredita verdadeiramente (se for falso, no conhecimento; lembre-se de o Papai Noel engordou) e acredita verdadeiramente de forma correta. O que seria essa forma correta? Muitos diriam que a forma correta de acreditar verdadeiramente acreditar com base em motivos ou justificao. As fontes de justificao so a percepo (viso, olfato, tato etc.), o testemunho (algum confivel me contou), o raciocnio (isso infervel a partir de algo que eu j acredito racionalmente), a memria (uma conscincia clara de que eu acreditava racionalmente nisso no ado) etc. Dessa forma, para que um sujeito tenha conhecimento de uma proposio, preciso que ele acredite em tal proposio, que tal proposio seja verdadeira e que ele acredite nela com base em um bom motivo, isto , acredite justificadamente.
Essa proposta ficou conhecida como anlise tripartite do conhecimento: o conhecimento uma crena verdadeira justificada. Edmund Gettier, contudo, argumentou que possvel ter uma crena verdadeira justificada de que uma proposio o caso e, ainda assim, no ter conhecimento de que tal proposio o caso (veja seu Is justified true belief knowledge?). Por exemplo, suponha que s 11h Elias forme uma crena de que so 11h porque viu um relgio marcando 11h. Mas suponha que aquele relgio esteja sem pilhas, e esteja parado marcando 11h. A crena de Elias verdadeira, e ele possui uma boa fonte de justificao, baseada em sua percepo visual do relgio marcando 11h e no raciocnio de que relgios marcam horas confiavelmente na maior parte do tempo. Gettier defende que a crena de Elias verdadeira e justificada, mas no conhecimento porque, se ele tivesse olhado para o relgio em qualquer outro minuto, a sua crena sobre que horas so no seria verdadeira.
Dessa forma, os epistemlogos aram a buscar uma forma mais robusta de conectar a justificao com a crena para que algo constitua conhecimento. No se pode exigir demais, ou no teremos resposta para os desafios cticos. Mas exigir de menos leva a considerar como conhecimento diversos casos como os de Gettier, em que a crena verdadeira por pura sorte. Como eliminar a sorte?
Dentre as diversas propostas, surgiu o externalismo, e, concomitantemente, a epistemologia reformada. O externalismo afirma que um sujeito como Elias pode formar crenas verdadeiras sem saber que suas crenas so verdadeiras, desde que o processo que gerou suas crenas seja legtimo. Assim, quando uma criana forma a crena de que amanh o sol ir nascer porque ele sempre nasce, ela est se valendo de um raciocnio indutivo, mesmo que ela no saiba nada sobre induo. Sendo a induo um mecanismo legtimo de produo de conhecimento, mesmo que a criana no tenha conscincia de que est empregando uma inferncia indutiva, sua crena verdadeira formada por um mecanismo confivel e constitui, portanto, conhecimento.
O que a epistemologia reformada defende que o mesmo se aplica crena em Deus. Para os epistemlogos reformados, a crena em Deus (em muitos casos) natural: ela formada por (ou aceita em virtude de) um mecanismo legtimo, confivel e natural. Assim como temos uma disposio natural ao raciocnio indutivo, temos uma disposio natural para a crena em entidades transcendentes e at mesmo para a crena em Deus.

Muitos ateus (como Daniel Dennett, por exemplo) defendem que a crena religiosa fruto de mecanismos naturais no crebro, faculdades ou mdulos cognitivos, talvez, que nos levam a crer em divindades. Para eles, essas faculdades so um subproduto da evoluo, fruto de um dispositivo de detectar outras mentes. Para que pudssemos acasalar e sobreviver, era til que consegussemos identificar nossos semelhantes: saber que algo ou algum era um ser vivo com uma mente. Para evitar perigos como animais selvagens que atacam durante a noite, era til que consegussemos identificar que certos movimentos na noite indicam a proximidade de um animal perigoso. Contudo, como esse dispositivo de perceber agentes muito sensvel, ele nos levou a desenvolver a crena no sobrenatural: barulhos noturnos que no eram causados por nenhum animal s poderiam ser causados por outro tipo de agentes: espritos, fantasmas ou demnios. Dessa forma, segundo eles, surgiu a crena religiosa que evoluiu at a crena em um nico Deus.
A epistemologia reformada concorda que a crena em Deus (em muitos casos) natural e formada por um mecanismo no crebro. Mas ela defende, em contraste a Dennett e a outros atestas, que esse mecanismo confivel. Por que esse mecanismo seria confivel? Porque o prprio Deus, ao criar suas criaturas, teria o interesse de se manifestar a elas. Deus quer ser conhecido, ainda que no de forma absolutamente clara e indistinta (como argumentam vrios filsofos), e quer ser adorado. Para isso, Deus dotou (em um sentido compatvel com diferentes posies acerca da doutrina da criao) os seres humanos com uma faculdade cognitiva ou algum mecanismo epistmico para ou (i) desenvolver a crena no transcendente e/ou em Deus, ou (ii) aceitar com mais facilidade a crena no transcendente e/ou em Deus, ou (iii) conseguir compreender a crena no transcendente e/ou em Deus. Essa capacidade ou disposio, portanto, serve para que possamos ter conhecimento de Deus seja nos levando a crer nele, seja nos tornando mais propensos a crer nele, seja nos permitindo ao menos compreender que possa haver algo como ele.
Os pioneiros dessa proposta no sculo 20 foram Nicholas Wolterstorff e Alvin Plantinga, ambos filsofos cristos da tradio reformada. Eles traaram a herana desse pensamento ao prprio Joo Calvino (sculo 16) e ao filsofo e pastor presbiteriano Thomas Reid (sculo 18). Calvino fala de um sensus divinitatis um sentido da divindade presente em todos os homens que os leva adorao, sendo tambm responsvel pelo surgimento de todas as religies (Institutas, cap. 3, 1). Thomas Reid foi um defensor da ideia de que nossas faculdades cognitivas devem ser tomadas como confiveis at que se prove que no o so (em oposio ao pensamento de Descartes, que sugeriu que elas no seriam realmente confiveis se pudssemos imaginar cenrios possveis em que elas so enganosas), embora no tenha explicitamente defendido uma faculdade cognitiva que gere o conhecimento do transcendente e/ou de Deus.
A terminologia de Plantinga a mais influente na epistemologia reformada. Para ele, a crena em Deus uma crena bsica, assim como as crenas do senso comum de Reid (crenas de que o Sol nascer no futuro, sobre a existncia de outras mentes, a crena de que 2 + 2 = 4, e assim por diante). Crenas bsicas so legtimas se forem formadas por um aparato cognitivo confivel que esteja funcionando apropriadamente, o que inclui estar em um ambiente apropriado para o seu funcionamento. Uma crena desse tipo provida de aval (ou avalizada, ou ainda, garantida, a depender da traduo de warrant, no original) por ter o que necessrio para que uma crena verdadeira constitua conhecimento. Assim, para Plantinga, conhecimento crena verdadeira avalizada, e aval concedido a uma crena que foi formada por um mecanismo confivel por meio de um processo de funcionamento adequado daquele mecanismo. A crena em Deus, portanto, seria avalizada porque o prprio Deus teria criado o sensus divinitatis para possibilitar a crena em sua existncia, de forma que esse mecanismo cognitivo poderia funcionar apropriadamente e gerar uma crena bsica. Dessa forma, mesmo que algum testa no tenha nenhum argumento a oferecer em favor de sua crena na existncia de Deus, essa crena pode ser racional, dado que crenas bsicas no dependem de argumentos ou evidncias para serem racionais.
Plantinga, contudo, vai alm em seu projeto, propondo que a crena crist em especfico tambm provida de aval (veja a obra Crena crist avalizada). Para ele, o sensus divinitatis no a histria completa sobre o conhecimento humano de Deus. A partir da Queda da raa humana, nosso sensus divinitatis bloqueado por um novo mecanismo cognitivo, o pecado (ou os efeitos noticos do pecado), que impedem o funcionamento apropriado do sensus divinitatis e, assim, afastam a mente humana do conhecimento de Deus. Apenas por intermdio da ao do testemunho interno do Esprito Santo possvel superar (ainda que parcialmente) os efeitos do pecado e atingir o conhecimento salvfico de Deus. Dessa forma, o conhecimento de Deus continua sendo gerado por um mecanismo confivel e de forma bsica (atravs do testemunho do Esprito Santo), e a crena crist de forma geral (ao menos a crena gerada pelo testemunho do Esprito) provida de aval.
Os desdobramentos posteriores da epistemologia reformada envolvem principalmente a investigao emprica (por meio das cincias cognitivas) da existncia de mecanismos cognitivos que possam fazer o papel requerido pelo sensus divinitatis. Kelly James Clark e Justin Barrett, por exemplo, em seu A epistemologia religiosa de Thomas Reid e a cincia cognitiva da religio, argumentaram que o dispositivo hipersensvel de deteco de agncia (mencionado anteriormente) possui esse papel de gerar conhecimento do divino de forma bsica e avalizada. H alguma evidncia, tambm, de que crianas bem novas (normalmente aos trs anos de idade) tenham a tendncia a crer que seus pais e outros adultos so oniscientes, e tenham, portanto, facilidade de compreender ou acreditar na existncia de um ser onisciente.
Os maiores desafios para a epistemologia reformada so realmente mostrar que h tal coisa como o sensus divinitatis e explicar por que a crena testa e a crena crist parecem mais ser formadas pela transmisso de uma tradio do que ser formadas por um mecanismo de formao de crenas bsicas (como o caso com a crena em outras mentes). H muitas culturas com crenas religiosas muito diferentes, e h uma quantidade significativa de ateus. A epistemologia reformada precisa mostrar por que essas pessoas, que no so estpidas ou irracionais, no acreditam em Deus. Se a resposta for que o mecanismo do pecado afeta o mecanismo do sensus divinitatis, se esperaria que fosse possvel encontrar tais mecanismos em conflito no crebro algo que ainda no foi feito.
Em resumo, a epistemologia investiga como podemos ter conhecimento, isto , como podemos saber coisas. Os desafios cticos nos mostram que no podemos ter critrios muito exigentes para o conhecimento, e o problema de Gettier, por outro lado, revela que critrios pouco exigentes tambm geram problemas. Uma proposta de meio termo o externalismo, que defende que a racionalidade alcanada quando uma crena produzida de forma apropriada por um mecanismo confivel ainda que o sujeito no tenha conscincia de argumentos ou evidncias para as suas crenas. A epistemologia reformada, de forma similar, argumenta que o conhecimento de Deus e mesmo a crena crist so produzidas por um mecanismo confivel e bsico, de modo que no preciso apresentar argumentos ou evidncias para se ter uma crena racional em Deus.
Nota
1. Para uma crtica viso de que Reid um precursor da epistemologia reformada, ver: Ryan Nichols e Robert Callergrd, Thomas Reid on Reidian Religious Belief Forming Faculties, Modern Schoolman, v. 88, pp. 317335, 2011.
Publicado originalmente no site Unus Mundus. Reproduzido com permisso.

No so todos os que alcanam a longevidade. Precisamos assimilar que a velhice uma estao to natural quanto s estaes do ano e que cada fase da vida tem suas especificidades e belezas prprias. Ao publicar esta matria de capa, Ultimato deseja encorajar um novo olhar para a velhice: um novo olhar dos idosos para eles mesmos e um novo olhar para os idosos por parte da igreja e da sociedade.
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Cincia e Religio - so compatveis?, Alvin Plantinga e Daniel C. Dennett
Filosofia da Religio Uma Introduo, William L. Rowe
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Davi Bastos casado com Samara e pai de Moiss, Anastcia (in memoriam) e Irene. editor da srie de livros Filosofia e F Crist (Editora Ultimato) e doutorando em filosofia na Unicamp.
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Revista Ultimato 5z423b
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