Jornalistas cristos – tica, ps-verdade e fake news 3u5h5e

A mdia manipuladora. Quem nunca ouviu essa afirmao ou mesmo falou essa e outras frases que criticam e colocam sob suspeita o trabalho da imprensa? Com a popularizao da internet e das redes sociais isso se tornou cada vez mais comum. Mas por trs dessa entidade miditica esto os jornalistas, profissionais que so mais do que apenas engrenagens da grande mquina. Eles tm o papel de apurar, pesquisar, entrevistar, investigar, noticiar, revelar, informar, reportar, denunciar... E, querendo ou no, so eles que pautam as conversas do boteco da esquina, as brigas nas redes sociais, o debate na sala de aula, e, s vezes, as pregaes de domingo noite. Odiados e amados, para o bem ou para mau, os jornalistas influenciam o mundo. E como fica o cristo que atua nessa rea? Como o jornalista cristo lida com a epidemia das fake news, com a ps-verdade, com a tica, ou a falta dela na profisso? Alis, possvel glorificar a Deus com o jornalismo? Com a palavra, os jornalistas Laurentino Gomes, Marilia de Camargo Cesar, Carlos Eduardo Fernandes e Elsie Gilbert:

Por que as fake news se espalham com tanta facilidade entre os evanglicos?

Laurentino Gomes: Boatos, rumores e notcias falsas sempre existiram e no so exclusivas do ambiente evanglico. No livro 1889, eu cito, por exemplo, uma fake news relacionada Proclamao da Repblica. No dia 14 de novembro de 1889, o major Frederico Slon de Sampaio Ribeiro, futuro sogro do escritor Euclides da Cunha, espalhou no Rio de Janeiro o boato de que o marechal Deodoro da Fonseca seria preso pelo governo imperial. Era mentira. Mas precipitou a queda da monarquia porque na madrugada seguinte o exrcito estava na rua para depor o gabinete do Visconde de Ouro Preto, o primeiro-ministro de Dom Pedro II. Hoje, as fake news se tornaram um problema bastante grave porque so rapidamente disseminadas pelas redes sociais, geralmente com o propsito deliberado de manipular a opinio pblica. H provas de que isso interferiu de forma decisiva, por exemplo, na eleio do ltimo presidente americano, em 2016. Ou seja, fake news tem consequncia poltica e pode mudar os rumos da histria de um pas.

Marlia de Camargo: No apenas entre evanglicos, mas entre brasileiros em geral. Nossa baixa formao educacional e pequeno senso crtico nos levam a no ter o hbito de questionar as informaes, de chec-las. No creio que isso seja mais forte entre evanglicos.

Carlos Fernandes: Penso que as fake news se espalham entre os evanglicos com a mesma velocidade e abrangncia com que se disseminam entre todas as pessoas - afinal, os chamados crentes em Jesus esto nas mesmas redes sociais e consomem as mesmas notcias que quaisquer outros. A diferena, a meu ver, no trato que dado a elas. Parece que, entre os evanglicos, disseminar informes assume um carter de misso, de obrigao; aquela coisa de alcanar o outro, com um inegvel vis proselitista. Refiro-me, neste momento, a notcias de cunho essencialmente religioso, como: pastor diz que o fim do mundo acontece no prximo Natal, astro pop declara que se encontrou com Cristo e resolveu virar eremita ou descoberta no Himalaia ossada que pode ser de Moiss. Por mais absurdas que sejam, tais mensagens so readas adiante numa tentativa de, talvez, mostrar aos outros a realidade da Bblia ou da f evanglica. Mas isso, em todo caso, tem pouca relevncia e tende a ser esquecido pelo leitor dali a um minuto e meio. O pior, e mais deletrio, a divulgao de fake news de contedo calunioso, capcioso ou poltico. Evanglicos tm sido vtimas fceis do disse-me-disse virtual, e o corredor de igreja aquele espao onde, tradicionalmente, os evanglicos trocam ideias tornou-se pblico e aberto a todos que estejam dispostos a um clique de mouse. Figures do segmento, hbeis na manipulao com interesses particulares, aproveitam-se disso e lanam bales de ensaio que so contemplados e reproduzidos no ciberespao pela boiada gospel. Em todos os casos (seja no das fake news inconsequentes; seja no das aes calculadas e plantadas), a repercusso ocorre pela falta de senso crtico e educao da massa evanglica, acostumada que est, historicamente, a crer em tudo que se diz, supostamente, em nome de Deus ou seguir toda orientao que vem do plpito. Ento, para sintetizar a resposta, as fake news se espalham com tanta facilidade entre os evanglicos porque lhes falta discernimento - e a pode-se incluir tanto o cognitivo quanto o espiritual.

Elsie Gilbert: Fake news coisa to antiga quanto a histria humana. Comea com a notcia de que Deus, ao invs de Criador bondoso, tem na verdade uma relao ambivalente com o ser humano, obra prima de sua criao. Quase como se tivesse se arrependido de ter dotado o ser humano com tanta inteligncia. "Porque Deus sabe que no dia em que dele comerdes se abriro os vossos olhos, e sereis como Deus, sabendo o bem e o mal." (Gn 3.5). Fake news permeia a Bblia de capa a capa e prova um elemento muito presente na natureza humana, nossa necessidade de acreditar em fatos, no a partir de evidncias, mas a partir do que queremos ouvir, a partir do que o nosso corao pede. Somos todos vulnerveis notcias falsas, desde o comeo. Ao mesmo tempo em que somos vulnerveis, no acreditamos em tudo o que ouvimos, por isso desenvolvemos muitos sistemas de defesa para averiguar a veracidade das informaes. Com o surgimento da imprensa e sua incrvel capacidade de veicular informaes, criamos leis para impor certas responsabilidades sobre quem detm o poder de influenciar outros com suas informaes. Em resumo, desenvolvemos, ao longo da histria humana, vrios mecanismos de defesa contra a inverdade. O que considero novo a revoluo tecnolgica pela qual transitamos e que nos permite veicular um "boato" com a mesma velocidade e alcance que uma notcia transmitida pelos tradicionais veculos de comunicao. Temos a capacidade tecnolgica, mas no temos os mecanismos de defesa ainda instalados em nossa cultura. E por isto, a nossa vulnerabilidade aumentou.

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Quais os principais desafios para um jornalista cristo em tempos de ps-verdade?

Laurentino Gomes: Os nossos grandes desafios no Jornalismo sempre foram o compromisso com verdade, o que envolve rigor na apurao das informaes, discernimento no relacionamento com as fontes e respeito pelas pessoas que vo consumir o produto do nosso trabalho, sejam leitores, ouvintes, internautas ou telespectadores. Ou seja, ns temos o dever de sermos honestos, ticos e cuidadosos no exerccio da nossa profisso. O jornalista por natureza um formador de opinio pblica. Portanto, tem responsabilidade enorme na maneira pela qual a sociedade informada e reage s informaes. As novas tecnologias, como a internet e, em especial, as redes sociais, tornaram o nosso trabalho mais complexo. Hoje, a informao gerada e distribuda com velocidade infinitamente maior do que duas ou trs dcadas atrs. Isso exige que sejamos ainda mais criteriosos e responsveis na apurao e na distribuio da informao.

Marlia de Camargo: Ser ainda mais criterioso no trabalho de apurao e checagem das informaes, ir atrs de fontes idneas e de preferncia sem agendas ocultas, apresentar sempre o outro lado, mesmo que este o incomode, ou seja, tentar ser um profissional ainda mais atento e cada vez menos ingnuo.

Carlos Fernandes: Trabalhar com os critrios bsicos de checagem de informaes, verificao de fontes, cotejamento de dados e honestidade intelectual. Isso, alis, so desafios de todo jornalista. No caso do jornalista que cristo (no gosto muito da classificao "jornalista cristo", j que as duas caractersticas no se complementam necessariamente), a responsabilidade ainda maior, j que, por profisso de f, quem cr em Cristo precisa seguir rigores que esta condio lhe traz sobretudo, o compromisso com a verdade. No caso daqueles que se dedicam prioritariamente ao segmento cristo, como, alis, o meu caso, um desafio adicional romper a barreira do chapabranquismo, engajamento e alinhamento que se espera, tacitamente, de um veculo de orientao crist. Quebrar a ideia de que a circulao de informao no meio evanglico deve ter como objetivos o proselitismo, a promoo de lderes e o fortalecimento de instituies. Mormente nestes tempos de ps-verdade, quando o que vale mais a abordagem, e no o fato, o jornalista que cristo deve ter a noo de que vai nadar contra a corrente e que lhe cabe um papel praticamente redentor. Afinal, a verdade liberta.

Elsie Gilbert: O trabalho para o jornalista cristo duplo: por um lado, ele precisa continuar a tradio de apurar fatos e se abster de reproduzir boatos, mas por outro lado, ele precisa ajudar o leitor a interpretar tais fatos sempre que possvel. E para isto, ele precisa dominar a meta-narrativa crist. Em outras palavras, ele precisa ajudar o leitor a compreender a relevncia dos fatos a partir de sua cosmoviso crist, sem medo de ofender ningum. O jornalista no neutro, nunca foi. Toda pea jornalstica est inserida em alguma meta-narrativa que conduz o olhar de quem a criou. Se no ajudarmos as pessoas a perceber a relevncia das notcias que veiculamos, ajudamos o inimigo da verdade a oferecer outra interpretao para as mesmas, assim como ele sempre fez, desde o jardim do den.

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Como glorificar a Deus por meio do jornalismo?

Laurentino Gomes: Acredito que o bom Jornalismo pode ser tambm um exerccio de misericrdia e compaixo para com os nossos semelhantes. O tsunami de informao hoje to avassalador que deixa as pessoas assustadas e inseguras. Em vez de tornar a sociedade mais consciente e bem informada, produz ansiedade, intolerncia e sofrimento. Por essa razo, ns, jornalistas, precisamos ser tambm curadores da informao. preciso que, nesse mundo afogado em informao, os jornalistas sejam um ponto de referncia de credibilidade e sensatez. Se somos pessoas de boa f, devemos ter cuidado com o que espalhamos, ou deixamos de espalhar, nas redes sociais, especialmente em ano de eleies, como este. No nos deixemos manipular pelas fake news.

Marlia de Camargo: Os ambientes de redao costumam ser lugar de trabalho de pessoas mais cticas, intelectualizadas e racionais. No muito comum encontrar cristos dedicados ali, mas no impossvel. Glorifica a Deus, acredito, tentarmos transmitir o amor de Deus sem usar palavras, apenas se for preciso, como disse So Francisco de Assis. E tambm tentar nos aproximar cada dia mais da pessoa que Ele sonhou que ns fssemos, desenvolvendo nossos talentos com esforo e dedicao. s vezes gosto da imagem de um jornalista como um escriba, dos tempos bblicos, que registravam os fatos importantes da poca e que foram eternizados pelas Escrituras. Ter essa dimenso deveria nos encher ainda de responsabilidade.

Carlos Fernandes: Da mesma forma como se pode glorificar a Deus atravs da varrio de ruas, da medicina, do telemarketing ou do direito: atuando com honestidade, motivaes corretas e cuidado com o outro. A glria ao nome do Senhor ser mais forte, no caso dos jornalistas, quanto menos clichs evanglicos forem necessrios na transmisso da informao e mais os nossos textos, posts ou artigos tocarem a mente e o corao do leitor. E, a meu ver, isso se consegue medida em que lhe oferecermos contedos de qualidade tcnica, relevncia informativa e responsabilidade editorial de modo que, conforme Cristo previu e foi registrado em Mateus 5, as pessoas vero o nosso trabalho e glorificaro a nosso Pai.

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Marilia de Camargo Cesar jornalista e escritora. Trabalha no Valor Econmico como editora-assistente.

Laurentino Gomes jornalista com mais de 40 anos no exerccio da profisso, autor dos livros 1808, 1822 e 1889, todos ganhadores do Prmio Jabuti de Literatura, e O Caminho do Peregrino: seguindo os os de Jesus na Terra Santa, escrito em parceria com o pastor Osmar Ludovico da Silva.

Carlos Eduardo Fernandes jornalista h 27 anos, com atuao em revistas crists de informao (Vinde, Eclsia, Seara, Vida Crist, Igreja, Cristianismo Hoje, Ultimato) e no segmento editorial evanglico, como editor e preparador de texto.

Elsie B. C. Gilbert jornalista e mestre em comunicao pela Wheaton College, Wheaton IL. Trabalha no Brasil como missionria enviada pela Equip Inc. Atualmente responsvel pela plataforma de comunicao da Rede Mos Dadas.

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