A Bblia no erra. Os leitores, nem tanto b4c2l

A propsito da primeira edio da revista Ultimato em 2023, quero pensar nas Escrituras como um dirio de Deus; um dirio repleto de verdade e amor; que pode iluminar nossas vidas

Por Rubem Amorese

Gostaria de comentar um filme Netflix bem recente, dando o mnimo de spoiler possvel. Seu ttulo O Dirio de Noel, no qual Raquel, uma mulher com seus 30 anos, procura por sua me biolgica, que a abandonara ao nascer. Ela vive um drama existencial, um vazio de amor que condiciona as suas memrias, sua personalidade, sua vida profissional e seus relacionamentos, por conta de uma consciente necessidade de segurana e significado.

Raquel procura por respostas. Quem sabe as ter ao confrontar sua me? Estar viva? Por que a deixou, ainda to pequena? Por que nunca a procurou?

Em sua busca, ela encontra Jacob, um romancista bem-sucedido, famoso... e s. Raquel sabia que sua me havia sido bab na famlia de Jacob. Encontra-o arrumando a casa de sua me, recm-falecida. Ele tambm tem seus problemas de infncia. Mas, diferentemente da Raquel, ele acha que sabe todas as respostas.

Entre os objetos pessoais de sua me, Jacob encontra um dirio. Era o dirio da sua bab, me de Raquel, chamada Noel Ellis.

A busca de Raquel agora iluminada pela leitura do dirio de Noel, onde encontra solilquios, oraes, dilogos imaginrios e temores de uma moa grvida e sozinha no mundo.

As revelaes do dirio vo trazendo novas possibilidades de interpretao do ado de Raquel. Se os dois partilham um ado marcado pelo desamparo, medida em que Raquel percebe o amor aflito de sua me, Jacob v suas certezas perderem fora. Em ambos os casos, o que aconteceu foi real; mas a percepo dos fatos estava mudando. E a chave para essa mudana hermenutica foi a descoberta do amor e do drama de Noel.

Aquele dirio falava, repetia, insistia, lamentava e sonhava sobre um nico tema: o amor de Noel por sua filha.

Esse filme me levou a pensar na leitura que fazemos dos fatos da nossa prpria vida, quando abrimos a Bblia. Os fatos, bblicos e nossos, esto l; aconteceram, um dia. Mas o que sabemos, com certeza, sobre eles? Muito pouco. Sabemos muito pouco, tambm, sobre a nossa prpria existncia, familiar e pessoal.

Mas eu estava falando de hermenutica. Sim, as dores de Raquel e Jacob tinham mais a ver com sua hermenutica existencial do que com os fatos. A compreenso dos mesmos poderia ser influenciada por motivos, razes e circunstncias da vida da me de Raquel. Jacob achava que conhecia tanto os fatos quanto motivos, razes e circunstncias das agresses e do abandono sofrido. Como estava errado!

Ao compreenderem essas circunstncias, foram levados a uma completa releitura de suas prprias vidas. E aqueles mesmos fatos acabaram por ser interpretados sob perspectivas diametralmente opostas. At mesmo os prprios eventos e acontecimentos agora tinham explicaes diferentes. Inimaginveis, se compreendidos a partir da chave hermenutica de que dispunham: o abandono. E a palavra abandono no era sequer questionada. Na verdade, abandono era a chave hermenutica que iluminava as poucas linhas de texto existencial que podiam ler.

Aquelas anotaes os conduzem a uma nova chave de interpretao dos tristes fatos de suas existncias. E o amor de Noel Ellis, substitui, agora, a chave abandono. Mesmo que nem todas as circunstncias tenham ainda sido elucidadas, seriam, agora, iluminadas por uma nova chave: o amor. E assim que Jacob decide procurar seu pai.

Quero pensar nas Escrituras como um dirio de Deus, no qual ele se declara pai afetuoso, que deseja o nosso bem; um dirio repleto de verdade e amor; que pode iluminar nossas vidas: somos filhos desejados e amados, em quem ele tem prazer.

Entretanto, a depender do corao com o qual lemos seu dirio, podemos permanecer em nossas dores, lendo suas palavras sob a chave do desamparo. Ou ento, se em cada palavra descobrirmos sinais de seu imenso amor por ns, toda a compreenso desse mesmo dirio, e tambm daquilo que ele fala sobre ns, ser cheia de amor, vida e luz.

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