O problema da cincia o cientificismo 285d4q

Por Pedro Dulci

Muitas vezes, a proposta de um dilogo entre cincia e f crist, tal como a Associao Brasileira de Cristos na Cincia (ABC) est propondo encarada como o dilogo entre conhecimento acadmico, cientfico e objetivo e a experincia religiosa subjetiva e privada. Entretanto, no existe nada mais distante dos nossos objetivos do que essa caricatura. Na verdade, por trs dessa forma bastante comum de pensar existe uma pressuposta polarizao uma das provas mais seguras de que precisamos falar sobre cincia em dilogo com a religio, a saber, a polarizao entre f crist e f na cincia. do engenheiro e filsofo holands Egbert Schuurman o insight de perceber que o principal obstculo para o dilogo entre f crist e cincia no so questes estritamente epistemolgicas, mas compromissos religiosos que algumas pessoas assumem com a cincia. Em suas prprias palavras: tornou-se cada vez mais claro para mim que essa questo geralmente colocada de forma incorreta. O que se questiona no a relao entre a f e a cincia, mas a relao entre a f crist e a f na cincia¹.

Com esse giro de rara preciso nas discusses sobre f crist e cincia, Schuurman nos fornece uma chave interpretativa para um fenmeno recorrente na prtica e no ensino cientfico: o cientificismo. Claro que o cientificismo tem muitas faces (acadmico, metodolgico, filosfico) e nenhuma rea do saber est livre dele nem mesmo a teologia crist. Entretanto, de modo geral, podemos definir o cientificismo como a reivindicao de que apenas os mtodos cientficos so capazes de nos fornecer conhecimento verdadeiro do mundo e de ns mesmos². Ou seja, trata-se de um compromisso e uma confiana de dimenses ltimas na cincia por isso, Schuurman fala de uma f na cincia. Essa forma de proceder no conhecimento cientfico traa os limites daquilo que podemos dizer que existe, do que podemos conhecer e os parmetros para nossas tomadas de deciso tica e religiosa.

No contexto de pesquisa acadmica e do pensamento cristo contemporneo, um nome que se destaca no dilogo crtico com o cientificismo o do professor Ren van Woudenberg³. Sua pesquisa est concentrada em entender como o conhecimento comum se relaciona com o conhecimento cientfico, alm de compreender como nossa viso de mundo ordinria se relaciona com a imagem cientfica do mundo. Nesse sentido, a busca de uma postura cientfica sem, ou para alm do cientificismo, se enquadra perfeitamente em suas produes intelectuais mais recentes.

Uma das formas privilegiadas que Woudenberg escolhe para abordar tal proposta cientificista questionando o que foi chamado de atitude cientfica, mas que na verdade a pressuposio cientificista por excelncia: [afirmaes] devem ser comprovadas como (aproximadamente, provavelmente, etc.) verdadeiras apenas se forem suficientemente apoiadas pela aplicao de mtodos validados de investigao ou descoberta⁴. Essa discusso assume importncia especial para ns, pois o seu contexto justamente o debate sobre as afirmaes religiosas a respeito das entidades sobrenaturais, anjos, inferno, alma, cu impossveis de serem submetidas atitude cientfica. Em sntese, o cientificismo refora o modelo de conflito entre cincia e religio⁵.

A argumentao de Woudenberg quanto a essa atitude cientfica, bem como em relao ao cientificismo de maneira geral, longa e complexa⁶. Entretanto, enquanto uma introduo s suas contribuies mais recentes para esse tema, podemos esquematizar seus movimentos argumentativos em, pelo menos, trs pontos chave.

Em primeiro lugar, o cientificismo descaracteriza a cincia. Quando sustentamos que um conhecimento cientfico to somente se estiver apoiado pela aplicao de mtodos de pesquisa, ao mesmo tempo retiramos o que prprio da cincia e acrescentamos o que no . Um exemplo o seguinte: verificar quantos quartos do hotel St. James so alugados em um determinado dia, contando o nmero de chaves que foram entregues, deve ser chamado de cincia tambm, desde que seja o melhor mtodo no momento⁷. Ou seja, a chamada atitude cientfica apenas uma parte de uma elaborada caracterizao da cincia, em que a aplicao de mtodos necessria, mas no suficiente para definir cincia. Segundo Woudenberg, a extenso da cincia muito mais ampla do que o uso comum dessa palavra sugere⁸.

Em segundo lugar, o cientificismo desconhece o que prprio da experincia religiosa. Um dos objetivos do projeto cientificista descredibilizar alegaes que no se encaixam na atitude cientfica como a religio testa crist. Entretanto, Woudenberg lembra que: o testa tpico no acha que sua crena religiosa se baseia em, ou um produto da pesquisa cientfica⁹. Nem o relato normativo das Escrituras, as prticas tradicionais da Igreja, nem a vivncia cotidiana da f crist reivindicam o mtodo cientfico para a formao do conjunto de suas crenas. Nesse sentido, a acusao de que as pessoas religiosas, ao fazerem reivindicaes religiosas factuais, carecem de atitude cientfica tambm no um problema¹⁰.

Em terceiro lugar, o cientificismo reducionista em relao formao do conhecimento verdadeiro. No apenas no mbito das prticas religiosas, mas tambm de maneira geral podemos dizer que o cientificismo incapaz de nos fornecer uma descrio do processo de formao de crenas verdadeiras. Woudenberg lembra que:

Todos ocasionalmente formamos crenas sobre nossos prprios estados mentais, como nos sentirmos cansados ou felizes. Suponha agora que voc se sente cansado e reivindique isto e, ento, que sua reivindicao contestada (talvez seu chefe pense que voc est dando uma desculpa esfarrapada para no ter que aparecer em uma reunio). [] Ento as alegaes de que voc se sinta cansado devem ser endossadas somente se forem suficientemente apoiadas pela aplicao de mtodos de pesquisa validados. Agora, quais mtodos de pesquisa am alegaes sobre fatos mentais">Cincia e F Crist