O futuro do evangelicalismo 6l4s14

Por Valdir Steuernagel

O evangelicalismo¹ em crescimento

O evangelicalismo uma das expresses do cristianismo que tem experimentado uma significativa expanso nestas ltimas dcadas. Essa expanso vista nos diferentes rinces de pases como o Qunia, na frica, ou em cidades de nome desconhecido como Barra do Corda, no Maranho. Tanto geogrfica como quantitativa, ela tem como uma das consequncias a penetrao de igrejas evanglicas e seus lderes em diferentes segmentos da sociedade, com uma consequente participao pblica, at agora bastante novidadeira. Essa expanso tem, ainda, se evidenciado no surgimento das mais diferentes igrejas com os mais diferentes nomes se estabelecendo com uma surpreendente agilidade em lugares inimaginveis. O evangelicalismo, nessas expresses recentes e crescentes, uma presena bastante nova no seio da sociedade, busca nela o seu lugar e por ela interpretada, especialmente em sua expresso pblica. Aqui no Brasil isto vem tona de novo, e com fora, neste ano eleitoral, no qual o assim chamado voto evanglico substancial e conta, sendo buscado e aliciado e se fazendo buscar e aliciar.

O evangelicalismo em crise

Em outros lugares, no entanto, o assim chamado "evangelicalismo" parece envelhecer e luta por identidade e continuidade, depois de ter experimentado expanso e crescimento num ado nem to distante. como se o evangelicalismo tivesse grande fora de chegada, mas significativas dificuldades de tornar a sua mensagem anunciada realidade. Os seus princpios e valores tendem a claudicar no encontro com a realidade sociocultural e poltica, deixando de marcar a sociedade de forma construtiva e restauradora, com poucas ainda que eloquentes excees histricas. Ou seja, o evangelicalismo parece ter dificuldade em encontrar o caminho de uma estabilidade transformadora na sociedade, luz de seus princpios e valores. Como consequncia, ele tende a amoldar-se realidade circundante, dilui a sua capacidade testemunhal e deixa de cativar as novas geraes, tanto no universo de suas prprias fileiras como numa expresso missionria.

Portanto, enquanto a f evanglica encontra efervescncia em muitos lugares da Amrica Latina, sia e frica, na velha Europa ela tem se tornado fortemente minoritria e nos Estados Unidos enfrenta uma aguda crise. Uma crise de identidade, de pertencimento e de posicionamento na sociedade, como se ver a seguir. Nesse pas as igrejas identificadas como evangelicais vivenciaram forte crescimento, especialmente a partir do sculo ado, e se constituram numa presena representativa na sociedade americana, com evidncia marcante em perodos eleitorais. Hoje, assim como o pas, a igreja tambm est dividida entre um evangelicalismo vermelho e um evangelicalismo azul, como expresso por Tim Keller em referncia ao Partido Republicano, que vermelho, e ao Partido Democrata, que azul.²

A efervescncia deste momento tornou-se evidente num encontro intitulado "O Futuro do Evangelicalismo Americano", que aconteceu nos dias 16 e 17 de abril de 2018 no Wheaton College, uma espcie de centro desse evangelicalismo. O evento reuniu cerca de cinquenta lderes evanglicos que, a convite, traziam consigo a herana de instituies como o Wheaton College, o Seminrio Teolgico Fuller, a InterVarsity, a National Association of Evangelicals, a National Latino Evangelical Coalition, a revista Christianity Today, entre outras. A inteno do encontro, como expresso na nota de imprensa, foi ter uma conversa honesta quanto ao presente estado do evangelicalismo americano e discutir o futuro do mesmo.

A necessidade dessa conversa foi percebida a partir das eleies presidenciais de 2016, quando se cristalizou uma crise de identidade deste evangelicalismo, que j vinha se aproximando. Como expressou Doug Birdsall, coordenador geral do evento, a Sarah P. Balley, Quando se digita "evangelical" no Google, a resposta "Trump". E, quando as pessoas dizem o que ser evanglico, elas no dizem evangelismo ou evangelho. H uma caricatura grotesca do que significa ser evanglico.³

Junto com esses cinquenta lderes americanos foram convidadas seis pessoas que representavam a igreja evanglica global, provenientes da Crocia, Lbano, Malsia, Inglaterra, Canad e Brasil, que foi o meu caso.

Evanglico: Como melhor defini-lo?

Antes de prosseguirmos com o encontro de Wheaton, importante definir brevemente o que significa ser "evanglico" uma expresso do cristianismo que tem sua identidade e caminhada histricas afirmadas por pontos que poderiam ser assim resumidos:

• A centralidade salvfica de Jesus Cristo, crucificado e ressurreto, conforme o testemunho das Escrituras.
• O reconhecimento da autoridade das Escrituras em tudo o que elas afirmam, com nfase na criao, queda, restaurao e na volta de Jesus no final dos tempos.
• A realidade da Igreja como fruto da evangelizao, e a afirmao de sua vocao missionria, tanto no seu prprio contexto como na expanso do evangelho at os confins da terra.
• O compromisso com o arrependimento na busca de uma vida santa que afirme os valores cristos, um carter ntegro, uma vida familiar slida e um testemunho pblico de credibilidade.

Olhando para as nossas igrejas evanglicas brasileiras, pode-se dizer que a maioria delas abraa e afirma os diferentes pontos dessa confisso, ainda que outra linguagem possa ser usada e outros itens, acrescentados. Alis, muito do que somos fruto da expanso missionria norte-americana que atuou fortemente entre ns at o final do sculo ado; e muito do que continuamos a ser influenciado por livros, pregadores e nfases bblico-teolgicas e estratgicas que continuam a aportar entre ns, vindos do Norte. Como afirmei no encontro de Wheaton, a igreja evanglica brasileira tem fortes marcas da herana que recebemos do evangelicalismo norte-americano, ainda que tenhamos adquirido contornos tpicos do que se poderia chamar de um evangelicalismo tupiniquim. No entanto, no deveria ser surpresa que a crise de vocs, como afirmei, tambm a nossa crise, apontando para uma igreja to dividida quanto a nossa sociedade e que, assim como acontece entre ns, tende a adaptar-se realidade sociocultural e poltica, e no a transform-la.

A nota de imprensa do evento afirma e resume a identidade evanglica dizendo que a reunio incluiu a reafirmao do nosso compromisso comum com o grande mandamento de amar a Deus e ao prximo (Mt 22.36-40) e a crena na dignidade de todas as pessoas como criadas imagem de Deus. O grupo tambm expressou arrependimento em reas nas quais os evanglicos no tm sido fiis ao ensinamento das Escrituras e examinou quanto o testemunho pblico dos evanglicos americanos tem ou no refletido a vida e os ensinos de Jesus.

O que est acontecendo?

O evangelicalismo americano, depois de significativa expanso, ou a experimentar e buscar uma relao mais prxima e influenciadora com o poder, tanto em sua expresso legislativa e executiva como judiciria. Isto poderia ser mapeado, at simbolicamente, referindo-se a duas personagens do ado recente: o evangelista Billy Graham e o pastor e evangelista batista Jerry Falwell. Enquanto Graham manteve um relacionamento de cordialidade e orao com diferentes presidentes americanos, ainda que fosse um tpico conservador, Jerry Falwell cocriou o movimento intitulado Moral Majority (Maioridade Moral), que veio a se constituir no maior lobby poltico evanglico a partir dos anos 80. Um lobby cuja inteno era eleger e monitorar os eleitos segundo uma agenda que poderia ser assim descrita:

• A favor da vida uterina e contra qualquer prtica abortista.
• A favor da famlia tradicional e contra qualquer possibilidade de casamento civil de homoafetivos.
• A favor de uma vida moral ntegra no que se refere a usos e costumes.
• A favor de um Estado pequeno e que garanta as liberdades individuais, inclusive a de portar armas.
• A favor de um Estado que conceda e mantenha os benefcios, inclusive pblicos, que foram concedidos s igrejas e entidades religiosas.
• A favor de uma Amrica grande e poderosa no exerccio de sua vocao de controlar o mundo.

claro que a agenda evanglica mais ampla e mais diversificada do que essa descrio, mas fato que a maioria evanglica foi caminhando e radicalizando tal agenda, o que se cristalizou nas ltimas eleies presidenciais. quase desnecessrio apontar para o fato de que essa agenda foi identificada com a do Partido Republicano, de ndole conservadora, levando a uma associao intestina entre o evangelicalismo e um partido poltico especfico. Quando se chegou eleio de 2016, esse quadro estava manifesto e agudizado. O centro de pesquisa da Pew Foundation tornou isso evidente ao identificar, na boca de urna da ltima eleio presidencial, que 80% dos evanglicos brancos votaram em Trump e o seu ndice de aprovao, entre eles, permanece forte e em 78%.⁴

Esse apoio ao que se poderia descrever como "trumpismo" qualificado como vindo da populao branca e poderia ser mais detalhado como vindo de uma Amrica mais idosa, mais remota e mais nervosa com a decrescente empregabilidade na velha indstria. Uma Amrica que est se tornando arredia ao outro, especialmente ao imigrante, e que quer voltar-se para si mesma a fim de se proteger de riscos e perdas diante de um mundo mais diversificado, mais urbano e global, mais rpido e at mais eficiente. L, um forte setor do evangelicalismo se identificou com essa agenda.

H tambm, no entanto, outro evangelicalismo que est inquieto e nervoso com essa tendncia e com essa caricaturizao. Este evangelicalismo representado pelas inmeras e enormes igrejas de populao negra, pelas crescentes igrejas de descendncia latina, por lideranas femininas que querem dar um basta sua contnua discriminao, por uma gerao de jovens urbanos que querem viver a sua f de forma racialmente integrada e sensvel ao outro e pelo reconhecimento de que preciso conversar e integrar-se a uma igreja evanglica global que atingiu a maturidade e quer uma parceria de igual para igual com aqueles que, muitas vezes, foram os seus pais e mes na f.

A tenso est posta e o caminho para o futuro ser marcado por muitos desafios. Tais desafios sero melhor encaminhados se as lideranas aprenderem a conversar umas com as outras, a se respeitar em suas respectivas posies e, especialmente, a escutar aqueles que se sentem fora do jogo do poder, da influncia e, inclusive, dos recursos econmicos. Aqueles que pouco ou nenhum lugar tm tido nessa mesa de conversas. Aqueles que discernem as igrejas americanas a partir de sua vocao missionria. Uma vocao que se coloca a servio do reino de Deus e que sempre vai muito alm de qualquer identidade nacional.

Riscos presentes e agenda desenhada

Participar desse evento do Wheaton College foi um enorme privilgio. Alis, nem foi difcil estabelecer pontes com a nossa realidade, pois tambm vivemos uma realidade tensa e polarizada, em que os cristos evanglicos so caricaturizados como sendo grotescos, desintegrados quanto nossa realidade e obcecados com uma agenda nica que desrespeita o outro. Como disse um dos participantes, lder da comunidade negra, As igrejas e organizaes evanglicas tm apoiado, por dcadas, uma agenda poltica que considerava as vidas no nascidas mais sagradas do que a vida dos negros que esto vivos.⁵

Ao participar do evento e perceber a dinmica das conversas, eu apontaria para alguns riscos e tenses que esto presentes na sociedade e no evangelicalismo americano hoje:

O carter e os valores. Uma das marcas histricas do evangelicalismo buscar uma vida que dignifique a Deus e afirme valores como a verdade, a integridade e a famlia, como conscincia de que estes formam um carter do qual a nossa sociedade carece. O trumpismo tem relativizado e vulgarizado esses valores e esse carter, vez aps vez, e incompreensvel e inaceitvel que lderes evanglicos continuem no apenas silenciando quanto a essa relativizao de valores, mas tambm apoiando um fenmeno que ir engoli-los: o trumpismo, no qual os meios so justificados e no qual a verdade e a integridade so construdas com pouco compromisso.

A relao com o outro. O trumpismo discrimina e trucida o outro, como pode ser visto na linguagem quanto ao muro que ser construdo na divisa com o Mxico ou na forma como o presidente Trump j se referiu a lderes de pases pobres, como o Haiti e da frica. O trumpismo discrimina para afirmar uma identidade branca que j no representa nem o mundo onde vivemos nem a realidade dos Estados Unidos, alm de tratar com indignidade a diversidade de raas e etnias criadas por Deus. Os Estados Unidos esto longe de superar o seu latente racismo, em que negros e latinos so considerados cidados de segunda categoria, em que a quantidade de pobres cresce e a distncia entre estes e os ricos, cujos impostos so reduzidos, aumenta continuamente. A histria do evangelicalismo, na prpria Amrica, tem exemplos e modelos de integrao racial e de promoo econmica que podem e devem ser resgatados neste presente momento, a despeito das polticas e prticas discriminatrias do trumpismo.

A viso de mundo e a decadncia do Imprio. Viver na Amrica, algo que eu mesmo j fiz, significa constatar quanto a sociedade americana tende a ser bairrista, olhando fundamentalmente para si. O grito de Trump que diz America First (Amrica primeiro) um sinal dessa tendncia egocntrica, mas tambm um sinal de desespero. Desespero de um mundo que mudou e que j no pergunta aos Estados Unidos se possvel mudar. Um mundo que discerne a existncia de outros poderes emergentes e caminha para uma realidade policntrica que , certamente, mais confusa, mais irreverente e pronta para desafiar e ridicularizar vozes prepotentes que se elevam esperando respostas de obedincia e submisso, como o prprio trumpismo tem experimentado.

O evangelicalismo americano tem sido uma inquestionvel fora missionria. Essa fora, porm, est em crise e perder o vigor medida que for se submetendo a uma idolatria nacionalista como a que est sendo alimentada no momento America First. O futuro desse evangelicalismo depende de sua capacidade de se livrar dessas correntes e se deixar libertar por um evangelho que estabelea uma mesa global onde todos tm direitos iguais, especialmente aqueles que nela nunca tiveram lugar.

Eu sa desse encontro irmanado na percepo de que os dias que vivemos so difceis e tensos, tanto l como c. Mas sa tambm com a percepo de que a f evanglica tem recursos que lhe possibilitam vivenciar o arrependimento e gestar o compromisso com uma caminhada que tenha no evangelho, na orao e no outro os sinais de esperana. Isto ficou evidente no encontro, quando as Escrituras foram abertas, crendo que a Palavra de Deus nos indicaria caminhos de escuta e esperana para os dias de hoje e a gerao de amanh. Evidenciou-se tambm, quando se abriu, na apertada agenda, tempo para a orao, o reconhecimento de que os caminhos precisam ser desenhados na escuta a Deus e na submisso mtua, por mais difcil e necessrio que isso venha a ser luz dos desafios que teimam em estar diante de ns. E a esperana ficou evidente quando a agenda do encontro abriu espao para um trabalho em grupo que tematizou assuntos que precisam ter um lugar especial em nossa vida e ministrio.

Basta enumerar a maioria dos temas desses grupos para vislumbrar o que est diante de ns no presente e no futuro:

• Carter: fundamental no exerccio de liderana;
• Imigrao: um fenmeno crescente e irrefrevel;
• Islamismo: expresso da crescente diversidade religiosa;
• Virtude pblica na busca de uma agenda que v para alm do aborto e do LGBTQ;
• Racismo: uma triste e assustadora realidade a desafiar a convivncia humana;
• Objetificao da mulher na contnua prtica de persistente discriminao.

A agenda est posta. E ela extremamente atual por tematizar assuntos que so sensveis e essenciais no processo de construo de uma sociedade mais diversa e global. Uma sociedade que carece e clama por uma Igreja que respire o evangelho e exale o amor de Deus. Agora, como foi enfatizado no prprio encontro, necessrio encontrar o tom para falar dessa e com essa realidade, seja l ou c, mas sempre juntos, como povo de Deus. O tom para esse testemunho nos foi dado pelo prprio Jesus, que nos ensina a refrear o mpeto de atiar fogo nos povoados samaritanos (Lc 9.51-56) e, em vez disso, sentar-nos no poo junto com a mulher samaritana e oferecer-lhe a gua da vida (Jo 4.7-15). Uma gua que sacia toda a sede humana por sentido, companhia, solidariedade e servio.

H uma tarefa pela frente, tanto l como c. No cenrio de um mundo e uma igreja globais compartilhamos desafios, dores e oportunidades. Alis, a natureza da f crist global muito antes da chamada globalizao, pois ela nos ajunta, como discpulos de Jesus que vivem em diferentes espaos, em torno de uma mesma mesa e de um mesmo mestre. Como parte dessa famlia de f aprendemos uns com os outros. Sou profundamente grato por ter podido compartilhar da experincia aqui referida, consciente de que a conversa precisa continuar tambm aqui, no nosso contexto. Ns, como evanglicos brasileiros, precisamos fazer o nosso dever de casa, identificar nossas lacunas e dores, assim como nossas oportunidades. E para isso precisamos reconhecer nossa fragilidade e descaminhos em nossa obedincia de f, buscar encontrar um ao outro em confisso e compromisso e ofertar-nos ao Senhor como sacrifcio vivo, na orao de que sejamos testemunhas dignas da vocao que recebemos em Cristo Jesus (Ef 4.1).

Notas
1. Evangelicalismo uma traduo literal do ingls evangelicalism e representa, especialmente nos Estados Unidos, as igrejas que se distanciam de um protestantismo de corte mais liberal. Devido natureza deste artigo, a expresso aqui usada, ainda que em nossa realidade brasileira ela no faa muito sentido. Pois, entre ns, a grande maioria das igrejas de corte protestante se identifica como confessionalmente evanglica, o que ser explicitado no decorrer do texto.
2. Ver o artigo publicado por Katelyn Beaty no The New Yorker (26/4/2018) intitulado At a Private Meeting in Illinois, a Group of Evangelicals Tried to Save their Movement from Trumpism.
3. Citado por Sarah Pulliam Balley no seu blog sobre religio no Washington Post de 16 de abril de 2018, em um artigo intitulado Dozens of Evangelical leaders meet to discuss how Trump era has unleashed grotesque caricature of their faith.
4. Ver nota 3.
5. Ver nota 2.

Valdir Steuernagel pastor na Comunidade do Redentor, em Curitiba, PR. Faz parte da Aliana Crist Evanglica do Brasil, da Aliana Crist Evanglica Mundial e da Viso Mundial.

* Texto originalmente publicado na edio 372 da revista Ultimato.

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