Espelho, espelho meu rz38

Jorge Camargo

Durante meus vinte e cinco anos morando com meus pais, o velho espelho da penteadeira de estilo clssico foi onipresente. Desde pequeno lembro-me de contempl-lo para ajeitar o cabelo, a roupa, os sonhos e a alma. Mesmo depois, sempre quando ia casa de meus pais, ar por ele era quase que um ritual obrigatrio, uma maneira de reconciliar-me comigo mesmo e com a minha prpria histria.

Na adolescncia, inmeras foram as vezes em que cantei e toquei diante dele pra corrigir a postura e vencer a timidez.

Ele foi um bom amigo, algum que me encorajou a dizer as coisas que digo em verso, som e cano.

E at hoje me ajuda a ver como sou: registrando os cabelos cados, as rugas que denunciam as marcas do tempo e o brilho nos olhos que me faz perseverar no que acredito.

Depois da morte de minha me, ele saiu de cima da penteadeira e foi para a casa dos meus sogros no interior.

Enquanto escrevo este texto, Vernica, uma de minhas filhas, est danando diante dele, se imaginando a bailarina mirim que j e a bailarina profissional que poder vir a ser.

Ao presenciar a cena, singela e ao mesmo tempo sublime, foi impossvel no deixar que minha mente viajasse no tempo, imaginando os personagens que aram diante dele, os momentos por ele registrados, as histrias que ele ajudou a contar, as saudades que ele suscita.

Um espelho um luzeiro. , ao mesmo tempo, um depsito, um relicrio de sentimentos, pensamentos e emoes.

Ao me olhar nele pela ensima vez, vasculho em meu rosto traos de esperana. E os encontro todos.

Como se no bastasse tantos registros, tantas marcas, tantas memrias, o velho espelho projeta o futuro.

espelho mgico.

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