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19 de janeiro de 2018
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Cura gay: um caso de conflito entre f e cincia? 3j5fg
Por Guilherme de Carvalho
Quando menino me envolvi em uma bela farsa entre os primos. Lanando mo da inquestionvel respeitabilidade como primo mais velho da distante Minas Gerais, segredei-lhes a chocante informao de que aquelas enormes torres de transmisso da Eletropaulo que cruzavam So Jos dos Campos estvamos quase embaixo de uma eram meus robs. Sim, meus robs! O primo Elton Jnior, hoje vereador na cidade, no cedeu imediatamente: mas como assim? Eles no vieram com voc! Sem mover um clio respondi com a convico do homem srio: mas que eles esto a, parados, porque no se movem sem meu comando. Acho que poucas vezes fui to convincente. Lembro-me apenas do seu salto, com incrdulos olhos esbugalhados, correndo a confirmar a informao com os pais. Tive uns breves momentos de riso solto at o primo voltar furioso. Custou a perdoar-me.
Uma farsa, talvez, no intencional.
Hoje, o mesmo primo milita contra vrias outras farsas bem mais momentosas que meus robs mineiros, como o corrente experimento de engenharia social associado ao discurso de gnero. Mas meu assunto hoje uma farsa associada: a assim chamada cura gay. Uma farsa, sim embora, talvez, no de todo intencional.
No sendo o caso de desfiarmos aqui a histria inteira do debate ao redor do tema, um histrico mnimo da despatologizao da homossexualidade faz-se necessrio. Em 1973, a American Psychological Association (APA) retirou a homossexualidade de seu catlogo de doenas (DSM-II), sendo seguida por vrias sociedades nacionais e internacionais. A OMS (Organizao Mundial de Sade) deixou de tratar a orientao homossexual como transtorno em 17 de Maio de 1990, publicando a alterao no CID-10 em 1992. E, em 1999, o Conselho Federal de Psicologia (CFP) estabeleceu em portaria (001/99) que os psiclogos no colaboraro com eventos ou servios que proponham tratamento ou cura da homossexualidade. [1]
A desordem comea quando, em 2004, um deputado evanglico da Assembleia Legislativa do Rio de Janeiro introduz o projeto de lei 717/2003 propondo um programa de auxlio a pessoas que desejarem mudar sua orientao sexual de homossexualidade para heterossexualidade. O projeto no ou, mas o assunto no morreu. Como se sabe, alguns psiclogos influenciados por sua orientao religiosa continuaram oferecendo graus variados de auxlio a pessoas homossexuais interessadas em reverter essa orientao ou reelaborar seu significado. E no poucos sofreram presses e policiamento dos pares em razo de sua alegada confuso entre cincia e religio.
Em uma manobra poltica relativamente eficiente, esse tipo de abordagem, condenada pelo CFP, recebeu a alcunha de Cura Gay uma suposta tentativa retrgrada e preconceituosa de tratar a orientao homossexual como patolgica e sujeita correo.
E essa expresso foi usada extensivamente e de forma estratgica para criar um clamor nacional contra a deciso judicial liminar expedida pelo juiz federal Waldemar Cludio de Carvalho, nos autos da Ao Popular n. 1011189-79.2017.4.01.3400, sobre os efeitos da momentosa Resoluo 09/1999, do CFP.
A deciso do juiz, como se sabe, no reverte a resoluo do CFP, mas pretende evitar uma interpretao intolerante da portaria, que segundo ele tornaria vedado ao psiclogo realizar qualquer estudo ou atendimento relacionados orientao ou reorientao sexual. O juiz afirmou ainda que a Constituio garante a liberdade cientfica bem como a plena realizao da dignidade da pessoa humana, inclusive sob o aspecto da sexualidade. Sua deciso garantiria aos psiclogos o direito de estudar ou atender queles que voluntariamente venham em busca de orientao acerca de sua sexualidade, sem qualquer forma de censura, preconceito ou discriminao.[2]
Charlatanismo, fundamentalismo religioso, pseudoterapia e nomes piores foram postos, mas o carro-chefe da grita foi cura gay. No se pode negar honestamente que entre os proponentes da ao popular houvesse a alegao de que abusos sexuais poderiam ser uma das causas da homossexualidade em certos casos. Ainda assim, no houve nem por esses nem pelo juiz a sugesto de uma teoria abrangente da homossexualidade como patologia. O uso da expresso na grande mdia foi claramente um recurso de manipulao emocional visando acirrar tenses, produzir indignao e destruir as condies para qualquer dilogo racional sobre o assunto.
O que se pde reconhecer nas inmeras entrevistas encomendadas, tanto de especialistas quanto de representantes da elite cultural e do grande pblico, foi a unnime alegao de que qualquer questionamento da orientao homossexual da pessoa em busca de ajuda psicolgica equivaleria a uma negao de sua dignidade, a alimentao de desnecessria confuso psquica com potencial patognico, e oportunizao de pseudoterapias de reverso e, assim, de charlatanismo.
Homo sentimentalis
Nessas declaraes se pode ouvir com nitidez que a inclinao homoafetiva, esse modo de objetivar o desejo sexual que est na base da autoidentificao homossexual, seria algo como um determinante definitivo e irrefutvel da identidade da pessoa. Lugar comum: se o sujeito tem orientao homoafetiva, ele gay, mesmo que esteja no armrio. Ele o que sente sexualmente; ele a sua afetividade.
Desse modo, se no seguir sua inclinao afetiva e no lhe der plena expresso, enfrentando corajosamente o temor da reprovao social e das regras morais ultraadas, a pessoa ser inautntica, aqum de uma personalidade plena, e possivelmente no imaginrio da psicologia popular doente pela represso do desejo.
Ora, essa compreenso da identidade pessoal seguramente falsa. A afetividade sexual , sem dvida, um dos principais constituintes da identidade pessoal; mas seu lugar e funo no fixo. H tantos modos de organizao do Self quanto h horizontes espirituais e mapas morais.
Em As Fontes do Self: a construo da identidade moderna (1989), um texto clssico e fundamental sobre o assunto, o filsofo Charles Taylor demonstrou que, dada a liberdade humana, o Self se constitui num espao de valores, que se organiza em um mapa centrado em uma ou outra ideia sobre o que teria valor absoluto: um hiperbem[3]. Esse hiperbem, que pode variar de pessoa para pessoa, d sentido existncia, ao estabelecer a localizao do indivduo e a direo que ele deve tomar em sua jornada espiritual. [4]
Mais ainda: dada a disperso num sentido analgico dos valores dentro do espao moral e a distncia entre o indivduo e o que ele considera um hiperbem, a significao da vida assume direo e durao, como uma jornada dentro desse espao. Ela se torna em narrativa [5], na qual viver tornar-se o que preciso ser. Assim, o hiperbem e a narrativa pessoal que frequentemente assume formas pr-estabelecidas, chamadas por Anthony Giddens de enredos constituem uma forma de organizao do Self e conferem identidade.
Uma mas no a nica forma de organizao do Self o que ele chama de individuao expressiva, ou expressivismo: a viso de que o o ao significado da vida se d por meio do contato e da expresso do que est dentro, no corao da pessoa. E a mediao principal dessa vitalidade interior o sentimento: quanto mais fiis somos ao sentimento, mais autnticos ns somos e mais significado a nossa vida tem. [6]
O expressivismo, cujas primeiras sementes encontram-se j em J. J. Rousseau, torna-se macrotendncia cultural no movimento romntico do sculo XIX e ter profundo impacto na mente contempornea, especialmente por meio das artes e da psicologia moderna. Da a funo quase sacerdotal da atividade artstica na imaginao secular moderna:
Em nossa civilizao, moldada pelas concepes expressivistas, ela ou a ocupar um lugar central em nossa vida espiritual, substituindo, em alguns aspectos, a religio. O maravilhamento que sentimos diante da originalidade e criatividade artsticas coloca a arte na fronteira do numinoso e reflete o lugar crucial que a criao/expresso ocupa em nossa compreenso da vida humana.
A compreenso tradicional da arte era de uma mimese. A arte imita a realidade Mas, segundo a nova forma de entendimento, a arte no imitao, mas expresso [7]
No imitao, mas expresso: difcil enfatizar a importncia dessa revoluo. Mais do que mera mudana de prtica artstica, temos aqui o limiar de um giro civilizacional de grandes propores, que costumo chamar de introverso narcsica. Taylor a chama de centramento subjetivo, ou subjetivao: isto , o centro das coisas cada vez mais no sujeito e de vrias maneiras. [8]
importante notarmos que esse processo foi acompanhado simultaneamente de uma crtica da ideia de ordem csmica e de bens morais objetivos crtica ligada, em termos gerais, ao historicismo moderno, que reduz a vida cultural atividade criativa livre do homem, dissolvendo qualquer ideia de uma lei da natureza humana ou de fins humanos superiores, independentes de seu bem-estar imediato. Essa dissoluo utilitarista de uma ordem moral objetiva e externa, resultando em um mundo achatado [9], arruinou as condies de resistncia ao subjetivismo.
E, assim, a racionalidade tornou-se instrumental, voltada para a manipulao tcnica do mundo exterior para submet-lo ao fim pragmtico da afirmao e cultivo dos bens prosaicos e cotidianos. A valorizao do cotidiano (o temporal, podemos dizer) se sobrepe a fins mais elevados, como a perfeio moral, a verdade, a santidade, etc. A razo instrumental captura e arrasta o real para a rbita do Self, que por sua vez liga-se ao real por meio do sentimento. [10]
A plausibilidade desse novo mindset apenas aumentou quando a psicologia foi descoberta pelas corporaes modernas a partir dos anos de 1920 como meio de elevar tanto a produtividade quanto o consumo, como mostrou de modo magistral a sociloga Israelense Eva Ilouz. A emergncia do capitalismo afetivo d imenso reforo civilizacional emergncia do que ela chama de homo sentimentalis [11]. E, para o indivduo sentimental, plausvel reformar a moralidade tendo em vista o mximo bem-estar emocional. [12]
Philip Rieff, seminal intrprete de Freud, observou a constituio ao longo do sculo 20 de um tipo novo e singular de narrativa de identidade, um novo paradigma de Self, que ele chamou de homem psicolgico. O homem psicolgico que com algum trabalho terico pode ser correlacionado com o homo sentimentalis de Eva Illouz e com o narciso acorrentado de Gilles Lipovetsky um indivduo avesso a desafios morais e absolutamente ocupado com seu prprio bem-estar, para o qual tradies, regras sociais e mesmo qualquer alegada ordem objetiva de bens seria um obstculo. Ele um revolucionrio em conflito com quaisquer leis ou limites externos.
O homem religioso nasceu para ser salvo; o homem psicolgico nasce para ser agradado. A diferena foi estabelecida h muito, quando o eu creio, o clamor do asceta, perdeu a precedncia para o ele sente, a desculpa do teraputico. E se a teraputica destina-se vitria, certamente que o psicoterapeuta ser o seu guia espiritual secular. [13]
Mas, como Rieff observou com clareza, vrios modelos antropolgicos j emergiram na psicoistria ocidental. O homem psicolgico certamente se sentir doente se no se ocupar do trabalho interior de se sentir bem. Mas isso no vale do mesmo modo para o homo economicus, ou para o homem religioso. Certamente no valeria para Scrates. [14]
O que significa o desejo?
Com muita perspiccia Charles Taylor notou que a autoexpresso emocional ou sexual-afetiva pode ser um hiperbem ou at mesmo um centro organizador da identidade de uma pessoa e no ser assim para outra:
() posso ver a realizao expressiva como algo incomparavelmente mais valioso que as coisas corriqueiras que todos desejamos na vida; mas vejo amar a Deus ou buscar a justia como algo, em si mesmo, incomparavelmente superior a essa realizao. Uma distino qualitativa de ordem superior segmenta os bens que so, eles prprios, definidos em distines de ordem inferior. [15]
O ponto terrivelmente importante. Uma viso divergente sobre hiperbens pode no mudar os desejos sexuais de algum, mas certamente muda o seu significado. Pois a identidade tem sua sede no espao moral, no campo da liberdade. Dependendo do meu mapa moral e de minha percepo de destino, significo diferentemente a minha existncia e penso diferentemente sobre onde estou. Isso pode at mesmo afetar meus sentimentos, em certos casos. Posso abraar uma mulher: o que sentirei certamente vai variar se sei que ela est apaixonada por mim, ou se algum que se envolveu num compl para minha demisso da empresa.
Imaginemos outra situao: eu e meu primo nos encontramos de repente numa estrada beira do mar. Ele tem uma bicicleta e eu tenho um barco. E ento recebemos um mapa, segundo o qual o nosso destino que aqui faz as vezes de hiperbem encontra-se no alto da montanha prxima.
Imediatamente sinto-me em desvantagem. Com a bicicleta ele poder chegar rapidamente ao topo. Mas o que farei com um barco? claro que posso recusar o mapa e acreditar no evangelho da autoexpresso: o que importa viver o que sou. Mas navegar no me levar ao topo da montanha. A questo no reside nos desejos, mas nos destinos.
A farsa
O que significa um desejo, uma inclinao homoafetiva ou heteroafetiva, ou bissexual? Em si mesmos, absolutamente nada. Eles significaro algo dentro de um mapa de sentido. E o que pode o CFP dizer a respeito disso? Absolutamente nada. Afinal, o artigo 2 b do Cdigo de tica veda o psiclogo de induzir seu paciente a convices religiosas, assim como probe induo de convices polticas, filosficas, morais e ideolgicas e de orientao sexual. [16]
A no ser que a organizao pretenda oferecer excathedra um mapa de sentido para a existncia, contrariando suas prprias resolues.
E exatamente aqui encontra-se a farsa (entre aspas, se lhe concedemos no ser mais que um ponto cego ideolgico): no silncio sobre a pertinncia da ajuda psicolgica ao indivduo que deseja ressignificar sua inclinao afetiva, a partir de qualquer mapa moral distinto do expressivismo romntico, e na associao desse silncio vocal condenao da cura gay, o CFP ou alguns que pensam represent-lo, promovem e reforam exatamente esse modo expressivista de autoconstituio, segundo o qual a pessoa no pode dizer no a si mesma, por razes superiores.
Na prtica, a existncia, na sociedade, de outros modos de constituio da identidade, diferentes do Homo Sentimentalis, so tratados como se no existissem, e a mera presena de desejos e inclinaes afetivas elevada posio de ncleo duro e fundamento definitivo da identidade da pessoa. E, assim, os psiclogos se tornam os sacerdotes de uma espcie de religio oficial da sociedade hiperconsumista.
Cincia ou religio?
No o caso, certamente, de ignorarmos o uso da problemtica expresso reorientao sexual no veredito do juiz Waldemar de Carvalho. verdade que ela pode ser interpretada no sentido tcnico de uma autorizao aplicao de terapias de reverso da orientao sexual, o que, como se sabe, no tem e cientfico e presta-se ampliao do sofrimento de muitas pessoas. Em pronunciamento especial em 06 de outubro deste ano, o PC (Corpo de Psiclogos e Psiquiatras Cristos) sabiamente reclamou a responsabilidade tcnica e cientfica:
Dentro dos limites da tica profissional, trabalhando exclusivamente com metodologias consagradas e referendadas pelos rgos reguladores da profisso, desconhecemos procedimentos de reorientao ou reverso de orientao sexual, garantidos os plenos direitos a escuta. claro que em nome da demanda ou da queixa do paciente, o psiclogo no pode oferecer servios que no tenham respaldo cientfico ou atentem contra a dignidade humana. [17]
Sim, sabemos que essa no toda a histria; pois o fato que muitas pessoas experimentam mudanas inesperadas em sua orientao sexual como fruto de processos espontneos, cujos mecanismos no foram adequadamente explanados. Embora no haja tcnicas capazes de produzir tais efeitos, no se pode plausivelmente bloquear a investigao do assunto em nome do dogma moral expressivista.
Ainda assim, preciso itir que a linguagem do juiz inadequada. Em primeiro lugar, porque, sem maiores qualificaes deixa realmente aberta a porta para a reintroduo de pseudoterapias de reverso, ainda que essa no seja a sua inteno.
Mas, em segundo lugar e isso igualmente ou at mais importante , inadequada porque deixa nas sombras a razo principal porque um psiclogo deve ser autorizado a fornecer apoio psicolgico a uma pessoa que deseja abandonar sua identidade gay ou trans: que essas identidades so, em nossa cultura, muito mais do que seus substratos afetivos, e um erro manifesto subsumir a identidade ao desejo, vedando a mudana de um por causa do outro. O desejo sexual no estabelece o destino de ningum.
Mudanas espirituais, ou existenciais, ou morais, como se queira, geram tenses e dilemas emocionais, e o psiclogo deve respeitar no apenas a inclinao afetiva, mas tambm a adeso do paciente a certo mapa moral e certo hiperbem, e deve auxili-lo na sua busca de integrao pessoal, considerando tanto suas realidades afetivas quanto o seu mapa moral original. Expresses mais adequadas do que reorientao sexual seriam: ressignificao de sua sexualidade ou reorientao identitria. Esse tipo de ajuda psicolgica to legtimo quanto o auxlio a uma pessoa em crise vocacional.
Mas por que razo a ressignificao dos desejos e sua requalificao recusada com tanta veemncia, mesmo quando se ite calmamente que o prprio corpo pode ser radicalmente modificado em nome dos sentimentos, dada a sua plasticidade, como se reivindica entre defensores do movimento trans? A razo que moralidade e corporeidade so valores menos slidos para o Homo Sentimentalis do que o prprio sentimento, que se tornou uma espcie de amuleto de segurana existencial:
o portador de um afeto reconhecido como o rbitro supremo de seus prprios sentimentos. Sinto que implica no s que a pessoa tem o direito de se sentir dessa maneira, mas tambm que esse direito a habilita a ser aceita e reconhecida, simplesmente em virtude de ela se sentir de certo modo. [18]
Essa fixidez mostra-se, no tanto um resultado cientfico, quanto uma espcie de doutrina moral e poltica, um problema de reconhecimento que traz uma dimenso exterior pblica e uma dimenso interna existencial.
A questo de fundo deve, ento, estar bem clara: o julgamento dos mapas morais dos pacientes encontra-se alm do escopo das cincias psicolgicas, mas ainda assim, eles no podem ser ignorados na prtica psicolgica.
Seria um caso de conflito de cincia e religio? Sim; mas a estrutura desse conflito no trivial. No se trata de um conflito do obscurantismo religioso contra as luzes da cincia. Pois, no caso, vemos ambos os grupos no escuro. Se no est claro para muitos setores religiosos que a fundamentao cientfica propriamente psico-lgica indispensvel para a prtica profissional que tem seu foco no psiquismo, no est de modo algum claro que o CFP reconhea os limites do discurso psicolgico e a jurisdio da religio na organizao dos mapas morais e dos hiperbens humanos.
A verdadeira base ou estrutura por trs desse conflito reside, no entanto, para alm das questes cientficas ou filosficas. O problema tem sua origem na ascenso do Campo Afetivo, como foi descrito por Eva Illouz: um campo de poder e de valores simblicos relacionados s competncias e capitais emocionais, e que disputa com a religio o poder de organizar a vida emocional dos indivduos, mormente porque a religio continua mostrando competncias e grande concentrao de capitais emocionais. Desde que o campo afetivo se tornou uma espcie de igreja do expressivismo moral, sob o alegado conflito de cincia e f temos, na verdade, um conflito de campos de poder social com suas respectivas moralidades.
Homo respondens
Enfim, para uma multido de crentes e incrus, essa espiritualidade sentimental no faz nenhum sentido. Consideremos, aqui, os cristos brasileiros, sejam catlicos ou evanglicos: os que no so nominais sabem que o caminho da identidade no a autoexpresso sentimental, mas a imitao moral.
A razo porque os tais continuaro ignorando os psiclogos que os ignoram que para eles h uma realidade externa cujo significado no meramente imposto pelo indivduo. O significado est l fora, numa ordem de bens e de finalidades, que se impe mente.
Esses crentes e no poucos incrus acreditam na existncia de uma ordem moral objetiva, uma ordem de bens alheia a seus estados subjetivos e sua vida afetiva. Para esses indivduos com escrpulos conservadores e no subjetivistas, h uma realidade externa cujo significado no meramente imposto pelo indivduo, como se projetado numa tela branca. O significado est l, uma ordem de bens e de finalidades se impe. Eles acreditam no que C. S. Lewis chama, em seu clssico A Abolio do Homem, de Lei da Natureza Humana.
Para os tais, o mundo real nos interpela e nos responsabiliza. Tudo o que podemos fazer responder. Temos o privilgio e o dever de responder. Assim a identidade no surge de uma alegada autoexpresso, de uma autenticidade sentimental, mas de uma reciprocidade na qual a natureza, a sociedade, a histria, o outro, e por que no? Deus j esto l e participam da minha autodefinio. Ao invs de buracos negros subjetivos, somos planetas, relativos entre si e iluminados por um Sol.
Aos que clamam biologia no destino! em nome da liberdade, segue-se como imperativo de coerncia afirmar que afetividade tambm no destino. Ainda que no possa ser ignorada, no a ltima palavra sobre a jornada e a identidade de ningum.
Guilherme Vilela Ribeiro de Carvalho telogo, mestre em Cincias da Religio e diretor de LAbri Fellowship Brasil. Pastor da Igreja Esperana em Belo Horizonte, tambm organizador e autor de Cosmoviso Crist e Transformao e membro fundador da Associao Brasileira Cristos na Cincia (ABC2).
Nota: Contedo publicado originalmente em Cristos na Cincia.
Referncias Bibliogrficas
[1] Para um breve, mas til histrico do processo, cf. Paolielo, Gilda, A Despatologizao da Homossexualidade. Em: Quinet A. e Jorge, M.A.C., As Homossexualidades na Psicanlise: na Histria de sua Despatologizao. So Paulo: Segmento Farma Editores, 2013, p. 29-46.
[2] A ntegra da ata da audincia pode ser encontrada no endereo: https://d2f17dr7ourrh3.cloudfront.net/wp-content/s/2017/09/ATA-DE-AUDI%C3%8ANCIA.pdf
[3] Vou denominar os bens de ordem superior desse tipo de hiperbens, isto , bens que no apenas so incomparavelmente mais importantes do que os outros como proporcionam uma perspectiva a partir da qual esses outros devem ser pesados, julgados e decididos. Em: Taylor, Charles, As Fontes do Self: a construo da identidade moderna. So Paulo: Loyola, 2013 (1989), p. 90.
[4] O que isso traz luz a ligao essencial entre identidade e uma espcie de orientao. Saber que se equivale a estar orientado no espao moral, um espao em que surgem questes acerca do que bom ou ruim, do que vale e do que no vale a pena fazer, do que tem sentido e importncia para o indivduo e do que trivial e secundrio. Taylor, As Fontes do Self, p. 44.
S somos um Self na medida em que nos movemos em certo espao de indagaes, em que buscamos e encontramos uma orientao para o bem. Taylor, As Fontes do Self, p. 52.
[5] Taylor, A Fontes do Self, p. 70.
[6] Essa noo de uma voz ou impulso interior, a ideia de que encontramos a verdade dentro de ns e, em particular, em nossos sentimentos esses foram os conceitos cruciais que justificavam a rebelio romntica em suas vrias formas por isso que Rousseau to frequentemente o seu ponto de partida. Taylor, As Fontes do Self, p. 472.
depois que se ite que o o ao significado das coisas interior, que ele s apreendido de forma adequada interiormente, possvel soltar sem problemas suas amarras das formulaes ortodoxas Taylor, As Fontes do Self, p.476.
[7] Taylor, As Fontes do Self, p. 482-3.
[8] Taylor, Charles, A tica da autenticidade. So Paulo: Realizaes, 2017 (2010), p.85.
[9] Taylor, A tica, p. 75.
[10] Taylor, A tica, p. 65-6.
[11] Illouz, Eva, O Amor nos Tempos do Capitalismo. Rio de Janeiro: Zahar, 2011, p. 11-12.
[12] nossos sentimentos so partes integrantes de nossa definio mais original e primordial do bem.
Se o bem viver definido em parte segundo certos sentimentos, ento ele tambm pode soltar suas amarras e afastar-se dos cdigos ticos tradicionais. Taylor, As Fontes do Self, p. 479
[13] Rieff, Philip. The Triumph of the Therapeutic: uses of Faith after Freud. Wilmington: ISI Books, 2006 (1966): p. 19.
[14] Uma breve sntese da psicoistria Rieffiana encontra-se em: Zondervan, Antonius A. W., Sociology and the Sacred: An introduction to Philip Rieffs Theory of Culture. Toronto: University of Toronto Press, 2005, p. 43-6.
[15] Taylor, As Fontes do Self, p. 90.
[16] Os trechos relevantes podem ser lidos no endereo: http://advivo.com.br/node/808210
[17] Cf. http://www.pc.org.br/pronunciamento-do-pc-resolucao-cfp-e-liminar/
[18] Illouz, O Amor nos tempos do Capitalismo, p. 59.

Uma farsa, talvez, no intencional.
Hoje, o mesmo primo milita contra vrias outras farsas bem mais momentosas que meus robs mineiros, como o corrente experimento de engenharia social associado ao discurso de gnero. Mas meu assunto hoje uma farsa associada: a assim chamada cura gay. Uma farsa, sim embora, talvez, no de todo intencional.
No sendo o caso de desfiarmos aqui a histria inteira do debate ao redor do tema, um histrico mnimo da despatologizao da homossexualidade faz-se necessrio. Em 1973, a American Psychological Association (APA) retirou a homossexualidade de seu catlogo de doenas (DSM-II), sendo seguida por vrias sociedades nacionais e internacionais. A OMS (Organizao Mundial de Sade) deixou de tratar a orientao homossexual como transtorno em 17 de Maio de 1990, publicando a alterao no CID-10 em 1992. E, em 1999, o Conselho Federal de Psicologia (CFP) estabeleceu em portaria (001/99) que os psiclogos no colaboraro com eventos ou servios que proponham tratamento ou cura da homossexualidade. [1]
A desordem comea quando, em 2004, um deputado evanglico da Assembleia Legislativa do Rio de Janeiro introduz o projeto de lei 717/2003 propondo um programa de auxlio a pessoas que desejarem mudar sua orientao sexual de homossexualidade para heterossexualidade. O projeto no ou, mas o assunto no morreu. Como se sabe, alguns psiclogos influenciados por sua orientao religiosa continuaram oferecendo graus variados de auxlio a pessoas homossexuais interessadas em reverter essa orientao ou reelaborar seu significado. E no poucos sofreram presses e policiamento dos pares em razo de sua alegada confuso entre cincia e religio.
Em uma manobra poltica relativamente eficiente, esse tipo de abordagem, condenada pelo CFP, recebeu a alcunha de Cura Gay uma suposta tentativa retrgrada e preconceituosa de tratar a orientao homossexual como patolgica e sujeita correo.
E essa expresso foi usada extensivamente e de forma estratgica para criar um clamor nacional contra a deciso judicial liminar expedida pelo juiz federal Waldemar Cludio de Carvalho, nos autos da Ao Popular n. 1011189-79.2017.4.01.3400, sobre os efeitos da momentosa Resoluo 09/1999, do CFP.
A deciso do juiz, como se sabe, no reverte a resoluo do CFP, mas pretende evitar uma interpretao intolerante da portaria, que segundo ele tornaria vedado ao psiclogo realizar qualquer estudo ou atendimento relacionados orientao ou reorientao sexual. O juiz afirmou ainda que a Constituio garante a liberdade cientfica bem como a plena realizao da dignidade da pessoa humana, inclusive sob o aspecto da sexualidade. Sua deciso garantiria aos psiclogos o direito de estudar ou atender queles que voluntariamente venham em busca de orientao acerca de sua sexualidade, sem qualquer forma de censura, preconceito ou discriminao.[2]
Charlatanismo, fundamentalismo religioso, pseudoterapia e nomes piores foram postos, mas o carro-chefe da grita foi cura gay. No se pode negar honestamente que entre os proponentes da ao popular houvesse a alegao de que abusos sexuais poderiam ser uma das causas da homossexualidade em certos casos. Ainda assim, no houve nem por esses nem pelo juiz a sugesto de uma teoria abrangente da homossexualidade como patologia. O uso da expresso na grande mdia foi claramente um recurso de manipulao emocional visando acirrar tenses, produzir indignao e destruir as condies para qualquer dilogo racional sobre o assunto.
O que se pde reconhecer nas inmeras entrevistas encomendadas, tanto de especialistas quanto de representantes da elite cultural e do grande pblico, foi a unnime alegao de que qualquer questionamento da orientao homossexual da pessoa em busca de ajuda psicolgica equivaleria a uma negao de sua dignidade, a alimentao de desnecessria confuso psquica com potencial patognico, e oportunizao de pseudoterapias de reverso e, assim, de charlatanismo.
Homo sentimentalis
Nessas declaraes se pode ouvir com nitidez que a inclinao homoafetiva, esse modo de objetivar o desejo sexual que est na base da autoidentificao homossexual, seria algo como um determinante definitivo e irrefutvel da identidade da pessoa. Lugar comum: se o sujeito tem orientao homoafetiva, ele gay, mesmo que esteja no armrio. Ele o que sente sexualmente; ele a sua afetividade.
Desse modo, se no seguir sua inclinao afetiva e no lhe der plena expresso, enfrentando corajosamente o temor da reprovao social e das regras morais ultraadas, a pessoa ser inautntica, aqum de uma personalidade plena, e possivelmente no imaginrio da psicologia popular doente pela represso do desejo.
Ora, essa compreenso da identidade pessoal seguramente falsa. A afetividade sexual , sem dvida, um dos principais constituintes da identidade pessoal; mas seu lugar e funo no fixo. H tantos modos de organizao do Self quanto h horizontes espirituais e mapas morais.
Em As Fontes do Self: a construo da identidade moderna (1989), um texto clssico e fundamental sobre o assunto, o filsofo Charles Taylor demonstrou que, dada a liberdade humana, o Self se constitui num espao de valores, que se organiza em um mapa centrado em uma ou outra ideia sobre o que teria valor absoluto: um hiperbem[3]. Esse hiperbem, que pode variar de pessoa para pessoa, d sentido existncia, ao estabelecer a localizao do indivduo e a direo que ele deve tomar em sua jornada espiritual. [4]
Mais ainda: dada a disperso num sentido analgico dos valores dentro do espao moral e a distncia entre o indivduo e o que ele considera um hiperbem, a significao da vida assume direo e durao, como uma jornada dentro desse espao. Ela se torna em narrativa [5], na qual viver tornar-se o que preciso ser. Assim, o hiperbem e a narrativa pessoal que frequentemente assume formas pr-estabelecidas, chamadas por Anthony Giddens de enredos constituem uma forma de organizao do Self e conferem identidade.
Uma mas no a nica forma de organizao do Self o que ele chama de individuao expressiva, ou expressivismo: a viso de que o o ao significado da vida se d por meio do contato e da expresso do que est dentro, no corao da pessoa. E a mediao principal dessa vitalidade interior o sentimento: quanto mais fiis somos ao sentimento, mais autnticos ns somos e mais significado a nossa vida tem. [6]
O expressivismo, cujas primeiras sementes encontram-se j em J. J. Rousseau, torna-se macrotendncia cultural no movimento romntico do sculo XIX e ter profundo impacto na mente contempornea, especialmente por meio das artes e da psicologia moderna. Da a funo quase sacerdotal da atividade artstica na imaginao secular moderna:
Em nossa civilizao, moldada pelas concepes expressivistas, ela ou a ocupar um lugar central em nossa vida espiritual, substituindo, em alguns aspectos, a religio. O maravilhamento que sentimos diante da originalidade e criatividade artsticas coloca a arte na fronteira do numinoso e reflete o lugar crucial que a criao/expresso ocupa em nossa compreenso da vida humana.
A compreenso tradicional da arte era de uma mimese. A arte imita a realidade Mas, segundo a nova forma de entendimento, a arte no imitao, mas expresso [7]
No imitao, mas expresso: difcil enfatizar a importncia dessa revoluo. Mais do que mera mudana de prtica artstica, temos aqui o limiar de um giro civilizacional de grandes propores, que costumo chamar de introverso narcsica. Taylor a chama de centramento subjetivo, ou subjetivao: isto , o centro das coisas cada vez mais no sujeito e de vrias maneiras. [8]
importante notarmos que esse processo foi acompanhado simultaneamente de uma crtica da ideia de ordem csmica e de bens morais objetivos crtica ligada, em termos gerais, ao historicismo moderno, que reduz a vida cultural atividade criativa livre do homem, dissolvendo qualquer ideia de uma lei da natureza humana ou de fins humanos superiores, independentes de seu bem-estar imediato. Essa dissoluo utilitarista de uma ordem moral objetiva e externa, resultando em um mundo achatado [9], arruinou as condies de resistncia ao subjetivismo.
E, assim, a racionalidade tornou-se instrumental, voltada para a manipulao tcnica do mundo exterior para submet-lo ao fim pragmtico da afirmao e cultivo dos bens prosaicos e cotidianos. A valorizao do cotidiano (o temporal, podemos dizer) se sobrepe a fins mais elevados, como a perfeio moral, a verdade, a santidade, etc. A razo instrumental captura e arrasta o real para a rbita do Self, que por sua vez liga-se ao real por meio do sentimento. [10]
A plausibilidade desse novo mindset apenas aumentou quando a psicologia foi descoberta pelas corporaes modernas a partir dos anos de 1920 como meio de elevar tanto a produtividade quanto o consumo, como mostrou de modo magistral a sociloga Israelense Eva Ilouz. A emergncia do capitalismo afetivo d imenso reforo civilizacional emergncia do que ela chama de homo sentimentalis [11]. E, para o indivduo sentimental, plausvel reformar a moralidade tendo em vista o mximo bem-estar emocional. [12]
Philip Rieff, seminal intrprete de Freud, observou a constituio ao longo do sculo 20 de um tipo novo e singular de narrativa de identidade, um novo paradigma de Self, que ele chamou de homem psicolgico. O homem psicolgico que com algum trabalho terico pode ser correlacionado com o homo sentimentalis de Eva Illouz e com o narciso acorrentado de Gilles Lipovetsky um indivduo avesso a desafios morais e absolutamente ocupado com seu prprio bem-estar, para o qual tradies, regras sociais e mesmo qualquer alegada ordem objetiva de bens seria um obstculo. Ele um revolucionrio em conflito com quaisquer leis ou limites externos.
O homem religioso nasceu para ser salvo; o homem psicolgico nasce para ser agradado. A diferena foi estabelecida h muito, quando o eu creio, o clamor do asceta, perdeu a precedncia para o ele sente, a desculpa do teraputico. E se a teraputica destina-se vitria, certamente que o psicoterapeuta ser o seu guia espiritual secular. [13]
Mas, como Rieff observou com clareza, vrios modelos antropolgicos j emergiram na psicoistria ocidental. O homem psicolgico certamente se sentir doente se no se ocupar do trabalho interior de se sentir bem. Mas isso no vale do mesmo modo para o homo economicus, ou para o homem religioso. Certamente no valeria para Scrates. [14]
O que significa o desejo?
Com muita perspiccia Charles Taylor notou que a autoexpresso emocional ou sexual-afetiva pode ser um hiperbem ou at mesmo um centro organizador da identidade de uma pessoa e no ser assim para outra:
() posso ver a realizao expressiva como algo incomparavelmente mais valioso que as coisas corriqueiras que todos desejamos na vida; mas vejo amar a Deus ou buscar a justia como algo, em si mesmo, incomparavelmente superior a essa realizao. Uma distino qualitativa de ordem superior segmenta os bens que so, eles prprios, definidos em distines de ordem inferior. [15]
O ponto terrivelmente importante. Uma viso divergente sobre hiperbens pode no mudar os desejos sexuais de algum, mas certamente muda o seu significado. Pois a identidade tem sua sede no espao moral, no campo da liberdade. Dependendo do meu mapa moral e de minha percepo de destino, significo diferentemente a minha existncia e penso diferentemente sobre onde estou. Isso pode at mesmo afetar meus sentimentos, em certos casos. Posso abraar uma mulher: o que sentirei certamente vai variar se sei que ela est apaixonada por mim, ou se algum que se envolveu num compl para minha demisso da empresa.
Imaginemos outra situao: eu e meu primo nos encontramos de repente numa estrada beira do mar. Ele tem uma bicicleta e eu tenho um barco. E ento recebemos um mapa, segundo o qual o nosso destino que aqui faz as vezes de hiperbem encontra-se no alto da montanha prxima.
Imediatamente sinto-me em desvantagem. Com a bicicleta ele poder chegar rapidamente ao topo. Mas o que farei com um barco? claro que posso recusar o mapa e acreditar no evangelho da autoexpresso: o que importa viver o que sou. Mas navegar no me levar ao topo da montanha. A questo no reside nos desejos, mas nos destinos.
A farsa
O que significa um desejo, uma inclinao homoafetiva ou heteroafetiva, ou bissexual? Em si mesmos, absolutamente nada. Eles significaro algo dentro de um mapa de sentido. E o que pode o CFP dizer a respeito disso? Absolutamente nada. Afinal, o artigo 2 b do Cdigo de tica veda o psiclogo de induzir seu paciente a convices religiosas, assim como probe induo de convices polticas, filosficas, morais e ideolgicas e de orientao sexual. [16]
A no ser que a organizao pretenda oferecer excathedra um mapa de sentido para a existncia, contrariando suas prprias resolues.
E exatamente aqui encontra-se a farsa (entre aspas, se lhe concedemos no ser mais que um ponto cego ideolgico): no silncio sobre a pertinncia da ajuda psicolgica ao indivduo que deseja ressignificar sua inclinao afetiva, a partir de qualquer mapa moral distinto do expressivismo romntico, e na associao desse silncio vocal condenao da cura gay, o CFP ou alguns que pensam represent-lo, promovem e reforam exatamente esse modo expressivista de autoconstituio, segundo o qual a pessoa no pode dizer no a si mesma, por razes superiores.
Na prtica, a existncia, na sociedade, de outros modos de constituio da identidade, diferentes do Homo Sentimentalis, so tratados como se no existissem, e a mera presena de desejos e inclinaes afetivas elevada posio de ncleo duro e fundamento definitivo da identidade da pessoa. E, assim, os psiclogos se tornam os sacerdotes de uma espcie de religio oficial da sociedade hiperconsumista.
Cincia ou religio?
No o caso, certamente, de ignorarmos o uso da problemtica expresso reorientao sexual no veredito do juiz Waldemar de Carvalho. verdade que ela pode ser interpretada no sentido tcnico de uma autorizao aplicao de terapias de reverso da orientao sexual, o que, como se sabe, no tem e cientfico e presta-se ampliao do sofrimento de muitas pessoas. Em pronunciamento especial em 06 de outubro deste ano, o PC (Corpo de Psiclogos e Psiquiatras Cristos) sabiamente reclamou a responsabilidade tcnica e cientfica:
Dentro dos limites da tica profissional, trabalhando exclusivamente com metodologias consagradas e referendadas pelos rgos reguladores da profisso, desconhecemos procedimentos de reorientao ou reverso de orientao sexual, garantidos os plenos direitos a escuta. claro que em nome da demanda ou da queixa do paciente, o psiclogo no pode oferecer servios que no tenham respaldo cientfico ou atentem contra a dignidade humana. [17]
Sim, sabemos que essa no toda a histria; pois o fato que muitas pessoas experimentam mudanas inesperadas em sua orientao sexual como fruto de processos espontneos, cujos mecanismos no foram adequadamente explanados. Embora no haja tcnicas capazes de produzir tais efeitos, no se pode plausivelmente bloquear a investigao do assunto em nome do dogma moral expressivista.
Ainda assim, preciso itir que a linguagem do juiz inadequada. Em primeiro lugar, porque, sem maiores qualificaes deixa realmente aberta a porta para a reintroduo de pseudoterapias de reverso, ainda que essa no seja a sua inteno.
Mas, em segundo lugar e isso igualmente ou at mais importante , inadequada porque deixa nas sombras a razo principal porque um psiclogo deve ser autorizado a fornecer apoio psicolgico a uma pessoa que deseja abandonar sua identidade gay ou trans: que essas identidades so, em nossa cultura, muito mais do que seus substratos afetivos, e um erro manifesto subsumir a identidade ao desejo, vedando a mudana de um por causa do outro. O desejo sexual no estabelece o destino de ningum.
Mudanas espirituais, ou existenciais, ou morais, como se queira, geram tenses e dilemas emocionais, e o psiclogo deve respeitar no apenas a inclinao afetiva, mas tambm a adeso do paciente a certo mapa moral e certo hiperbem, e deve auxili-lo na sua busca de integrao pessoal, considerando tanto suas realidades afetivas quanto o seu mapa moral original. Expresses mais adequadas do que reorientao sexual seriam: ressignificao de sua sexualidade ou reorientao identitria. Esse tipo de ajuda psicolgica to legtimo quanto o auxlio a uma pessoa em crise vocacional.
Mas por que razo a ressignificao dos desejos e sua requalificao recusada com tanta veemncia, mesmo quando se ite calmamente que o prprio corpo pode ser radicalmente modificado em nome dos sentimentos, dada a sua plasticidade, como se reivindica entre defensores do movimento trans? A razo que moralidade e corporeidade so valores menos slidos para o Homo Sentimentalis do que o prprio sentimento, que se tornou uma espcie de amuleto de segurana existencial:
o portador de um afeto reconhecido como o rbitro supremo de seus prprios sentimentos. Sinto que implica no s que a pessoa tem o direito de se sentir dessa maneira, mas tambm que esse direito a habilita a ser aceita e reconhecida, simplesmente em virtude de ela se sentir de certo modo. [18]
Essa fixidez mostra-se, no tanto um resultado cientfico, quanto uma espcie de doutrina moral e poltica, um problema de reconhecimento que traz uma dimenso exterior pblica e uma dimenso interna existencial.
A questo de fundo deve, ento, estar bem clara: o julgamento dos mapas morais dos pacientes encontra-se alm do escopo das cincias psicolgicas, mas ainda assim, eles no podem ser ignorados na prtica psicolgica.
Seria um caso de conflito de cincia e religio? Sim; mas a estrutura desse conflito no trivial. No se trata de um conflito do obscurantismo religioso contra as luzes da cincia. Pois, no caso, vemos ambos os grupos no escuro. Se no est claro para muitos setores religiosos que a fundamentao cientfica propriamente psico-lgica indispensvel para a prtica profissional que tem seu foco no psiquismo, no est de modo algum claro que o CFP reconhea os limites do discurso psicolgico e a jurisdio da religio na organizao dos mapas morais e dos hiperbens humanos.
A verdadeira base ou estrutura por trs desse conflito reside, no entanto, para alm das questes cientficas ou filosficas. O problema tem sua origem na ascenso do Campo Afetivo, como foi descrito por Eva Illouz: um campo de poder e de valores simblicos relacionados s competncias e capitais emocionais, e que disputa com a religio o poder de organizar a vida emocional dos indivduos, mormente porque a religio continua mostrando competncias e grande concentrao de capitais emocionais. Desde que o campo afetivo se tornou uma espcie de igreja do expressivismo moral, sob o alegado conflito de cincia e f temos, na verdade, um conflito de campos de poder social com suas respectivas moralidades.
Homo respondens
Enfim, para uma multido de crentes e incrus, essa espiritualidade sentimental no faz nenhum sentido. Consideremos, aqui, os cristos brasileiros, sejam catlicos ou evanglicos: os que no so nominais sabem que o caminho da identidade no a autoexpresso sentimental, mas a imitao moral.
A razo porque os tais continuaro ignorando os psiclogos que os ignoram que para eles h uma realidade externa cujo significado no meramente imposto pelo indivduo. O significado est l fora, numa ordem de bens e de finalidades, que se impe mente.
Esses crentes e no poucos incrus acreditam na existncia de uma ordem moral objetiva, uma ordem de bens alheia a seus estados subjetivos e sua vida afetiva. Para esses indivduos com escrpulos conservadores e no subjetivistas, h uma realidade externa cujo significado no meramente imposto pelo indivduo, como se projetado numa tela branca. O significado est l, uma ordem de bens e de finalidades se impe. Eles acreditam no que C. S. Lewis chama, em seu clssico A Abolio do Homem, de Lei da Natureza Humana.
Para os tais, o mundo real nos interpela e nos responsabiliza. Tudo o que podemos fazer responder. Temos o privilgio e o dever de responder. Assim a identidade no surge de uma alegada autoexpresso, de uma autenticidade sentimental, mas de uma reciprocidade na qual a natureza, a sociedade, a histria, o outro, e por que no? Deus j esto l e participam da minha autodefinio. Ao invs de buracos negros subjetivos, somos planetas, relativos entre si e iluminados por um Sol.
Aos que clamam biologia no destino! em nome da liberdade, segue-se como imperativo de coerncia afirmar que afetividade tambm no destino. Ainda que no possa ser ignorada, no a ltima palavra sobre a jornada e a identidade de ningum.
Guilherme Vilela Ribeiro de Carvalho telogo, mestre em Cincias da Religio e diretor de LAbri Fellowship Brasil. Pastor da Igreja Esperana em Belo Horizonte, tambm organizador e autor de Cosmoviso Crist e Transformao e membro fundador da Associao Brasileira Cristos na Cincia (ABC2).
Nota: Contedo publicado originalmente em Cristos na Cincia.
Referncias Bibliogrficas
[1] Para um breve, mas til histrico do processo, cf. Paolielo, Gilda, A Despatologizao da Homossexualidade. Em: Quinet A. e Jorge, M.A.C., As Homossexualidades na Psicanlise: na Histria de sua Despatologizao. So Paulo: Segmento Farma Editores, 2013, p. 29-46.
[2] A ntegra da ata da audincia pode ser encontrada no endereo: https://d2f17dr7ourrh3.cloudfront.net/wp-content/s/2017/09/ATA-DE-AUDI%C3%8ANCIA.pdf
[3] Vou denominar os bens de ordem superior desse tipo de hiperbens, isto , bens que no apenas so incomparavelmente mais importantes do que os outros como proporcionam uma perspectiva a partir da qual esses outros devem ser pesados, julgados e decididos. Em: Taylor, Charles, As Fontes do Self: a construo da identidade moderna. So Paulo: Loyola, 2013 (1989), p. 90.
[4] O que isso traz luz a ligao essencial entre identidade e uma espcie de orientao. Saber que se equivale a estar orientado no espao moral, um espao em que surgem questes acerca do que bom ou ruim, do que vale e do que no vale a pena fazer, do que tem sentido e importncia para o indivduo e do que trivial e secundrio. Taylor, As Fontes do Self, p. 44.
S somos um Self na medida em que nos movemos em certo espao de indagaes, em que buscamos e encontramos uma orientao para o bem. Taylor, As Fontes do Self, p. 52.
[5] Taylor, A Fontes do Self, p. 70.
[6] Essa noo de uma voz ou impulso interior, a ideia de que encontramos a verdade dentro de ns e, em particular, em nossos sentimentos esses foram os conceitos cruciais que justificavam a rebelio romntica em suas vrias formas por isso que Rousseau to frequentemente o seu ponto de partida. Taylor, As Fontes do Self, p. 472.
depois que se ite que o o ao significado das coisas interior, que ele s apreendido de forma adequada interiormente, possvel soltar sem problemas suas amarras das formulaes ortodoxas Taylor, As Fontes do Self, p.476.
[7] Taylor, As Fontes do Self, p. 482-3.
[8] Taylor, Charles, A tica da autenticidade. So Paulo: Realizaes, 2017 (2010), p.85.
[9] Taylor, A tica, p. 75.
[10] Taylor, A tica, p. 65-6.
[11] Illouz, Eva, O Amor nos Tempos do Capitalismo. Rio de Janeiro: Zahar, 2011, p. 11-12.
[12] nossos sentimentos so partes integrantes de nossa definio mais original e primordial do bem.
Se o bem viver definido em parte segundo certos sentimentos, ento ele tambm pode soltar suas amarras e afastar-se dos cdigos ticos tradicionais. Taylor, As Fontes do Self, p. 479
[13] Rieff, Philip. The Triumph of the Therapeutic: uses of Faith after Freud. Wilmington: ISI Books, 2006 (1966): p. 19.
[14] Uma breve sntese da psicoistria Rieffiana encontra-se em: Zondervan, Antonius A. W., Sociology and the Sacred: An introduction to Philip Rieffs Theory of Culture. Toronto: University of Toronto Press, 2005, p. 43-6.
[15] Taylor, As Fontes do Self, p. 90.
[16] Os trechos relevantes podem ser lidos no endereo: http://advivo.com.br/node/808210
[17] Cf. http://www.pc.org.br/pronunciamento-do-pc-resolucao-cfp-e-liminar/
[18] Illouz, O Amor nos tempos do Capitalismo, p. 59.
telogo, mestre em Cincias da Religio e diretor de LAbri Fellowship Brasil. Pastor da Igreja Esperana em Belo Horizonte e presidente da Associao Kuyper para Estudos Transdisciplinares, tambm organizador e autor de Cosmoviso Crist e Transformao e membro fundador da Associao Brasileira Cristos na Cincia (ABC2).
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19 de janeiro de 2018
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