Carnavalizao da criatividade 6q6a6t

Quando se cresce em um lar bilngue e multicultural como o meu, inevitvel a comparao entre pases e culturas. Como missionrios vindos da Alemanha nos anos 60 e apaixonados pelo Brasil, meus pais s tinham elogios a fazer ao pas no qual aram a morar, embora tambm reconhecessem suas limitaes.

Uma das caractersticas brasileiras mais comentadas em nossa casa a criatividade. Meus pais diziam que para sobreviver com apenas um salrio mnimo (ou at menos) preciso mesmo ser muito criativo. E o Carnaval era um dos exemplos citados da manifestao suprema da criatividade brasileira. Nestes dias, referindo-se escola campe desse ano que teve como tema o piloto Airton Sena e toda a sua sofisticao, meu pai dizia o quanto irava a criatividade desse povo. Tambm podemos encontrar esta criatividade nas pequenas coisas do dia a dia, como no batuque do samba no nibus, nos comerciais de televiso, nas novelas e no cinema nacional.

Mesmo assim, eu me pergunto muitas vezes: o que houve com a criatividade em outros setores, como na poltica, nas prticas escolares e na tica da lei de Grson e do jeitinho? Por que o brasileiro no canaliza todo esse potencial que tem para projetos polticos e sociais, ambientais e de sustentabilidade realmente revolucionrios e transformadores para a sociedade? No quero desmerecer as iniciativas existentes nesse sentido, das quais nos orgulhamos e algumas das quais at foram exportadas para fora. O problema novamente poltico: elas no so valorizadas no Brasil.

Nessas horas nos voltamos para a sociedade alem, com sua sistematicidade e tendncia rotina, ao certinho, e ficamos abismados com o que essa nao j contribuiu, sendo vista como uma referncia de estabilidade na poltica e na economia da Europa.

Por que a Alemanha, com criatividade tacanha e recursos naturais limitados, tornou-se um gigante, enquanto o Brasil pode ser mais adequadamente chamado de gigante adormecido? Por que o brasileiro no consegue reverter a sua criatividade para a dimenso do bem comum?

Bem, eu diria que a resposta que est na ponta da lngua de todos os brasileiros : a poltica (principalmente a corrupo e a falta de tica dos polticos). Mas o que torna essa resposta reducionista e pouco contributiva o conceito que se tem geralmente de poltica. Poltica so eles. Poltica no Brasil raramente se refere a ns. So raras as entidades de classe, que nos autorizam a falar de uma sociedade civil realmente ativa, compromissada e engajada na res-pblica.

J o alemo, ele tem um forte senso comunitrio e de civilidade. L, ai de quem gasta muita gua limpando a calada! Ele ser logo advertido pelos vizinhos -- s vezes com palavras duras -- a no gastar de forma to abusada esse nosso bem precioso.¹

Ento, o que falta senso de comunidade (o que diferente da simples solidariedade que o brasileiro tem de sobra). E isso se aprende primeiramente em casa, e depois na escola. Mas a famlia e a escola j esqueceram ou ignoram que poltica vem de polis (cidade em grego) e que tem tudo a ver com a cidadania, ou seja, a capacidade de conviver em uma cidade. Polticos somos todos ns e acus-los com um dedo em riste significa apontar para ns mesmos com o resto dos dedos.

Essa ignorncia ou lapso de memria se deve muito tambm, a meu ver, ao nosso ado colonialista, patriarcalista e ditatorial: falar em poltica algo limitado aos polticos e at, de certa forma, algo perigoso.

Ento, a ideia de poltica do brasileiro : vamos protestar, mas com a clssica falta de compromisso e civilidade, que se traduz em quebradeira e vandalismo; vamos satirizar a poltica, mas com a clssica alienao; vamos fazer acontecer, mas com a clssica carnavalizao de amplos setores da sociedade. O negcio trocar os fins pelos meios: ritualizar a devoo criatividade somente durante o Carnaval e reprimi-la no resto do ano.

Nota:
1. Isso realmente aconteceu com minha me, quando ela resolveu aplicar esse costume brasileiro na Alemanha. Ela foi quase linchada.

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