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15 de junho de 2016
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Seis princpios cristos para tempos de crise poltica 6p6q6q

Primeiro princpio: Mais importante do que saber qual posio adotar, saber como se comportar
Neste momento em que a poltica ameaa dilacerar o mundo cristo (talvez mais do que a sociedade como um todo), queremos sugerir alguns princpios para o debate poltico. Esses princpios levam em conta que este momento ar e que dentro de alguns anos os cristos no tero mais de se posicionar sobre Dilma, Lula, Cunha, Acio e Srgio Moro, mas ainda tero de conviver entre si como irmos na f e dar sociedade um exemplo de seriedade e sabedoria. Da a importncia de cultivar o pluralismo poltico natural da comunidade crist, de saber debater e discordar sem se excomungar mutuamente ou distorcer as motivaes alheias, lembrando que a poltica, embora muito sria, pertence ao reino do relativo, e no do absoluto; esfera das convices, mas no (com raras excees) esfera das doutrinas bsicas da f.
Segundo princpio: Cultivar o recato poltico cristo
Em matria de poltica, o cristianismo se caracteriza por um certo recato, uma certa hesitao, um no-dogmatismo, um amplo espao livre de discordncia legtima entre os cristos.
Esse recato vem em parte das origens histricas da f. Alguns contrastes com o isl nos ajudam a entender o que isso significa. O fundador do isl governou um estado; o fundador do cristianismo foi morto pelo estado. Os seguidores do primeiro gozaram de poder poltico desde o comeo: controlavam um territrio, implementavam leis e usavam a fora. Os seguidores do segundo aram trezentos anos sem poder poltico, como uma comunidade voluntria, transnacional e transtnica. Foi nesse perodo que as Escrituras normativas foram escritas. Por isso, o cristianismo, via de regra, tem menos autoconfiana poltica do que o isl, se sente menos vontade para exercer o poder em nome de Deus ou dar receitas polticas em nome da f.
Alm disso, o conceito cristo de revelao que Deus se revelou ao longo do tempo, de vrias maneiras e em circunstncias muito diversas, culminando na encarnao do Filho de Deus. No s o mundo bblico muito distante do nosso mundo, como tambm houve vrios mundos bblicos. O Novo Testamento foi escrito para a comunidade crist primitiva, que era um pequeno grupo transnacional, sem controle de um territrio, sem o ao poder poltico e sem possibilidade de criar legislao pblica. Quem tenta criar uma poltica crist s do Novo Testamento logo esbarra com esse problema de um certo vazio poltico, sobretudo num contexto democrtico em que os cidados so convocados a participar da constituio das autoridades. Da que a posio default do cristianismo primitivo a distncia da poltica.
Por outro lado, o Antigo Testamento, escrito para uma comunidade nacional que de fato lidava com as questes de territrio, lei, poder e fora, tem de ser lido luz da revelao cabal de Deus em Cristo. Nenhum pas hoje, por mais cristos que tenha, est na situao do Israel do Antigo Testamento. Por isso, a poltica crist sempre menos segura de si do que (por exemplo) a maioria das abordagens islmicas.
Alm disso, a poltica , como se diz, a arte do possvel e os fenmenos polticos de uma sociedade moderna so muito complexos. O resultado disso que duas pessoas que tirem os mesmos princpios polticos da Bblia podem, mesmo assim, discordar radicalmente sobre o que possvel e aconselhvel fazer hoje no Brasil.
Jesus nos avisou a ter cuidado com o fermento dos fariseus e dos saduceus (Mt 16.6). Embora diferentes entre si, ambos os grupos absolutizavam o que deveria ser relativizado luz de Cristo. Hoje, um exemplo do fermento dos fariseus e saduceus colocar a f crist a servio de uma determinada posio poltica. Essa politizao da identidade desastrosa para a igreja, e idlatra, absolutizando as nossas opinies relativas e colocando-as no mesmo patamar das doutrinas centrais da f.
Terceiro princpio: Distinguir os debates
Hoje, pelo menos quatro questes se embaralham e a no separao delas dificulta os debates:
a) se a presidente Dilma merece sofrer impeachment; b) sobre a corrupo como problema generalizado na poltica brasileira; c) preferncias partidrias e quem gostaramos de ver no poder; d) questes ideolgicas maiores (neoliberalismo, neoconservadorismo, social-democracia, socialismo etc.).
Quarto princpio: Evitar o maniquesmo e reconhecer as muitas posies possveis
No existem apenas duas posies (a favor ou contra o impeachment). Estar preocupado com os procedimentos falhos (no Congresso e nas investigaes) no o mesmo que defender este ou aquele acusado. perigoso aceitar um processo muito falho s porque os atingidos so os nossos desafetos polticos.
Em parte, os problemas decorrem de um desencontro entre presidencialismo e parlamentarismo. Num sistema parlamentarista, a primeira-ministra Dilma cairia por um simples voto de no confiana, sem necessidade de impeachment. Como o presidencialismo no contempla essa possibilidade, recorre-se ao mecanismo constitucional do impeachment. No entanto, abre-se um precedente perigoso, pois esse mecanismo se destina a situaes excepcionais, e no a um simples expediente para remover mandatrios impopulares.
Dadas as complexidades do atual processo, devemos reconhecer as mltiplas posturas possveis no interior da comunidade crist. E devemos procurar nos inteirar dos melhores argumentos do outro lado, em vez de acreditar nas caricaturas divulgadas por boa parte da mdia.
Quinto princpio: ar do moralismo simplista na perspectiva crist da corrupo
Para cristos que entendem pouco de poltica, a corrupo se apresenta como uma questo poltica aparentemente fcil de entender, pela transferncia de valores morais pessoais esfera pblica. Polticos espertos, inclusive cristos, se aproveitam disso para tentar mobilizar suas bases e justificar sua prpria presena nos parlamentos. Mas a viso crist sobre a corrupo muito mais sofisticada do que isso. Dois aspectos se destacam. Primeiro, a viso crist da natureza radical do pecado, que afeta no s todos os indivduos, mas tambm todos os grupos e instituies, inclusive igrejas e partidos polticos, sem exceo. Os cristos que deveriam ser menos suscetveis a qualquer messianismo em torno de pessoas ou partidos; e os cristos que menos deveriam se surpreender com os inevitveis desapontamentos. E, em segundo lugar, o cristianismo oferece uma viso equilibrada entre a renovao individual e a renovao institucional. A corrupo se relaciona tanto com instituies quanto com fatores culturais, e essas duas renovaes se fortalecem mutuamente no combate corrupo. A reduo substancial da corrupo obra de muito tempo, e em vrias frentes.
Porm h mais. A comunho universal humana no pecado uma das grandes justificativas da democracia; ningum merece ter poderes ilimitados e no supervisionados sobre seus semelhantes. E tambm um dos principais argumentos pela preocupao poltica com as gritantes desigualdades sociais. A f crist realista: onde houver desigualdade, haver opressores e oprimidos. Por isso, amar o prximo inclui o esforo para enfraquecer as estruturas desiguais que engendram a opresso.
Isso nos ajuda a entender o fato de que o combate corrupo uma causa poltica que mobiliza muito mais a classe mdia do que os mais pobres. No que estes no reprovem a corrupo nem entendam a sua importncia (afinal, os mais pobres sofrem mais com quase todas as formas de injustia). Mas, na escala de prioridades polticas das pessoas mais desvalidas da sociedade, o assunto no tem a mesma proeminncia. Para elas, ainda que a corrupo seja abominada, h mazelas ainda maiores a serem enfrentadas.
A viso crist do mundo tambm nos ajuda a lembrar que j estivemos aqui antes (em 1992). A campanha anticorrupo extremamente necessria, mas no resolver o problema de uma vez por todas, e certamente ser aproveitada para outros fins polticos e econmicos.
Qualquer melhora resultante ser apenas temporria se no houver reformas polticas, sobretudo dos sistemas eleitoral e partidrio. O sistema eleitoral de representao proporcional com listas abertas responsvel por parte considervel da corrupo poltica brasileira. ( responsvel tambm pelas grandes bancadas evanglicas, o que significa que os polticos evanglicos dificilmente tero um papel construtivo no combate corrupo.) E a proliferao de partidos no Congresso piora o problema. No tirando fulano e botando sicrano que vai resolver.
Sexto princpio: Saber distinguir entre um ideal e seu portador
Todos os projetos humanos acabam desapontando, seja movimento ou partido ou igreja. Mas a desiluso com o portador de um ideal no precisa levar ao abandono do ideal em si (assim como a desiluso com determinada igreja no precisa levar ao abandono da f crist). preciso saber criticar e, se necessrio, abandonar o portador, sem necessariamente rejeitar o ideal que dizia representar. (Existem, claro, ideais totalmente irrealistas, os quais desapontaro vez aps vez; estes devem ser abandonados. Um ideal maduro, por outro lado, potencialmente realizvel e, ademais, consegue explicar o prprio desapontamento.)
No meio cristo, a tarefa de distinguir entre ideal e portador enfrenta outra dificuldade: o uso tendencioso da palavra ideologia como palavro para criticar os nossos adversrios polticos. Eles so ideolgicos; ns no somos.
Curiosamente, esse uso tendencioso lembra o marxismo (ideologia como falsa conscincia que os outros tm). Muito melhor adotar o uso de outras correntes das cincias sociais e dizer que todos ns temos as nossas ideologias, pelo mero fato de sermos seres humanos inseridos em determinado lugar social, com limitaes e interesses. Nenhum de ns tem o olhar de Deus.
Hoje, enfrentamos duas tentaes: a de rejeitar um ideal porque o portador decepcionou; e a de agarrarmo-nos ao portador porque achamos que a sobrevivncia do ideal o exige. Ou, para mudar a analogia: a tentao de jogar fora o beb com a gua suja do banho; e a tentao de querer preservar a gua suja junto com o beb.
importante neste momento no abrir mo de ideais polticos perfeitamente compatveis com a Bblia e, alis, recomendados pela Bblia, como a justia e a solidariedade; a priorizao dos mais fracos e necessitados para diminuir a extrema desigualdade; o valor fundamental da democracia como reflexo tanto da antropologia crist como do carter de Deus expresso na maneira como trata a humanidade desde o comeo, e a maneira como trata a humanidade reconstituda em Cristo (sintetizado na frase de Glatas 3.28: Em Cristo no h homem nem mulher, judeu nem grego, escravo nem livre); e a rejeio da idolatria tanto do Estado quanto do mercado (parafraseando Marcos 2.27: O ser humano no foi feito para o sbado/Estado/mercado, mas sim o sbado/Estado/mercado para o ser humano).
Ser cristo significa no se curvar diante de modismos. A histria d muitas voltas e quem subordina sua leitura da f a consensos sociais ageiros, a supostas lies claras da histria, descobrir um dia que essa leitura ficou estranhamente datada. Por isso, devemos afirmar a importncia do pluralismo poltico cristo, em que alguns sero mais de direita, outros mais de esquerda, mas nunca desprezando ou excomungando aqueles de quem discordamos politicamente.
Nota: Artigo publicado originalmentena revista Ultimato, edio 360, maio/junho.
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Acaso Cristo est dividido? (Marcos Napoli)
De esquerda ou de direita: sejamos inteligentes e cristos (Paulo Freston)
A parbola da figueira e a nossa crise atual (Maurcio Jaccoud da Costa)
Paul Freston, ingls naturalizado brasileiro, professor colaborador do programa de ps-graduao em sociologia na Universidade Federal de So Carlos e professor catedrtico de religio e poltica em contexto global na Balsillie School of International Affairs e na Wilfrid Laurier University, em Waterloo, Ontrio, Canad.
Raphael Freston mestrando em sociologia na Universidade de So Paulo.
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