Po a quem tem fome 3rf6r

Eis que algum se aproximou de Jesus e lhe perguntou: Mestre, que farei de bom para ter a vida eterna. Se voc quer ser perfeito, v, venda os seus bens e d dinheiro aos pobres e voc ter um tesouro nos cus. Depois venha e siga-me (Mt 19.16-21).

H muito tempo tenho o hbito de escutar o programa Observatrio Feminino que vai ao ar todos os domingos de manh. No s pelo ttulo - Observatrio -, mas tambm pelo chamado ao pblico feminino. Percorro os temas a partir da escuta que diz respeito s mulheres de modo geral, mas visceralmente tambm a mim. Num domingo recente a convidada foi Patrcia - (no guardei o sobrenome) - uma das coordenadoras da CUFA/BH Central nica das Favelas de MG¹, representante da comunidade/territrio do Morro do Papagaio. Territrio - denominao dada regio das comunidades excludas no grande territrio no perifrico.

Dentre as vrias aflies j existentes nas comunidades, houve um agravamento aps o incio da pandemia. A palestrante citou na sua brilhante exposio as questes das mulheres das comunidades excludas socialmente. Destaco alguns pontos: 1) As mulheres da periferia representam no mnimo 50% da renda familiar, sendo, desde cedo, a mo de obra ativa do lar. A Covid veio tirar concretamente dessas famlias o dinheiro trazido por essas mulheres. 2) Praticamente todas as mulheres da periferia tm dupla ou tripla jornada de trabalho, pois alm dos afazeres domsticos trabalham em outros territrios e servios que no pararam. 3) 80% dessas mulheres so chefes de famlia e neste momento encontram-se em situao de extrema vulnerabilidade porque diariamente necessitam se deslocar de casa para o trabalho em transportes coletivos precrios e lotados, ou seja, exposio concreta de risco sade. 4) O problema mais grave o nmero de bitos. So muitas famlias cujas crianas ficaro rfs ps controle da pandemia e at o momento no h nenhuma ao concreta que esteja, antecipadamente, desenhando algum projeto social e de assistncia a uma gerao que est a na nossa frente e que se tornar mais um dos tantos problemas sociais gravssimos de nosso pas.

Infelizmente a pandemia, alm da grande devastao que vem promovendo mundo afora, tambm traz um forte agravante: no democrtica!

Alm dos temas destacados, a palestrante se incluiu na situao. Relatou aos ouvintes que do lugar onde reside no Morro do Papagaio tem vista para o bairro Serra. Disse tambm que a separao dos territrios se d s vezes pela diviso de apenas uma rua. A comunidade enxerga do outro lado da rua alm dos muros de concreto, muros invisveis que separam seres humanos em pessoas desiguais. No estava falando, naturalmente, apenas da cor da pele, das diferenas culturais e econmicas, isto bvio e sim do fosso aberto pela fome. Atrs do muro, a mesa farta! To farta que deixa restos e mais restos que mais tarde ou no dia seguinte sero catados, como se fosse uma colheita perdida, por aqueles do outro lado que, cruelmente, no mesmo dia estavam dividindo entre si (quando havia) apenas um prato de comida.

Encerro este texto com dois pequenos trechos do livro Quarto de Despejo, de Carolina Maria de Jesus²: - ei no frigorfico para pegar ossos. Nos incio eles nos dava linguia. Agora nos d osso. Eu fico horrorisada vendo a pacincia da mulher pobre que contenta com qualquer coisa (p. 113). Achei um saco de fub no lixo e trouxe para dar ao porco. Eu j estou to habituada com as latas de lixo, que no sei ar por elas sem ver o que h dentro (p. 125). D vontade de citar o livro todo. Os erros ortogrficos fazem parte do original.

Concluo fazendo minhas as palavras da Patrcia: A desigualdade no l longe, s vezes apenas atravessar a rua. Doar um gesto de amor.

Maria Aparecida Anto, psicloga clnica, especialista em Psicanlise, Sade Pblica e Sade Mental e Trabalho. Membro da Igreja Batista da Redeno, BH/MG.