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04 de dezembro de 2018
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Justia e transformao social: os sinais do reino 4x5f15
Por Mauricio Cunha
Aprendei a fazer o bem; atendei justia, repreendei ao opressor; defendei o direito do rfo, pleiteai a causa das vivas. (Isaas 1: 17)
Fazei justia ao fraco e ao rfo, procedei retamente para com o aflito e o desamparado. (Salmos 82:3)
Antes, corra o juzo como as guas; e a justia, como ribeiro perene. (Ams 5:24)
O tema da justia social e sua relao com a Misso sempre foi alvo de controvrsias na Igreja. A discusso sobre as questes relativas Justia e transformao se inserem num contexto mais amplo, da relao da Igreja com a cultura abrangente, evocando diferentes concepes teolgicas e filosficas. Recentemente, a polmica foi aguada nos Estados Unidos, com a publicao do texto Statement on Social Justice and the Gospel, apoiado por John MacArthur, Douglas Wilson, Voddie Baucham, entre outros lderes cristos.
Mais de 4.500 pastores americanos am a Declarao, denunciando o chamado evangelho da justia social.
Este artigo apresenta um contraponto, em face da relevncia do tema para a Igreja brasileira, a nossa realidade social, e as srias implicaes que a disseminao deste contedo pode trazer para a Misso da Igreja e as iniciativas e organizaes de base crist que atuam na rea da Justia Social.
A Declarao constitui mais um captulo desta grande controvrsia nos EUA, colocando em polos opostos o grupo defensor da Justia Social e o grupo mais conservador e fundamentalista da igreja americana, especialmente nas questes relativas ao racismo. Ela uma resposta ao movimento da Justia Social, que v o racismo no prprio DNA da Amrica, acreditando na primazia da identidade de grupo baseada na cor da pele (assim, seu uso sem remorso da frase privilgio branco), juntamente com uma sociologia que v o mundo como uma luta de poder de soma zero entre grupos tnicos (ou seja, se um ganha, porque o outro est perdendo). Embora esta seja uma questo tambm latente no Brasil, no nosso caso, talvez, pudssemos traar um paralelo com a questo da luta de classes e da desigualdade social, e no apenas racial.
Segundo Scott Allen (DNA), h diversos pontos positivos no chamado evangelho social norte-americano, entre eles a preocupao com questes sociais, como a pobreza, o racismo e a situao do refugiado; o anseio por ver as comunidades florescerem, e a no-adoo uma teologia antibblica, prejudicada pelo dualismo sagrado-secular. Ou seja, os defensores do evangelho social acreditam que a igreja dever estar engajada na cultura, lutando contra a injustia e trabalhando para libertar os empobrecidos e oprimidos.
No entanto, pesa contra esta corrente de pensamento uma questo fundamental, que adoo acrtica de algumas suposies sobre justia social provenientes da cultura mais ampla e sem respaldo bblico. Inadvertidamente, permitiu-se que suposies seculares informassem sua teologia do engajamento cultural. Como exemplo, sua mentalidade antibblica bem captada nesta citao do defensor do evangelho social, o jornalista Horace Greeley:
O corao do homem no depravado. . . suas paixes no induzem a fazer errado e, portanto, por suas aes, no produzem o mal. O mal s flui da desigualdade social. D [pessoas] escopo completo, liberdade, um desenvolvimento perfeito e completo, e a felicidade universal deve ser o resultado ... cria uma nova forma de sociedade na qual isso ser possvel. . . ento voc ter a sociedade perfeita; ento voc ter o Reino dos Cus.
Vemos aqui uma negao do pecado inerente ao corao humano como resultado da Queda, ignorando a dimenso individual da salvao. A confuso sobre a justia precisa ser substituda por um cuidadoso discernimento das diferenas fundamentais entre a justia bblica e a justia social nos termos mundanos ou meramente humanistas.
O problema com esta corrente da justia social no sua paixo em engajar a cultura e lutar pela justia, mas a ideologia antibblica que, muitas vezes, vem no mesmo pacote.
A Histria se repete
Em resposta ao movimento do evangelho social e suas concepes humanistas, o movimento fundamentalista levantou-se para defender o evangelho e o ensino bblico ortodoxo, condenando os defensores do evangelho social por seu ensino supostamente hertico. Mas ao faz-lo, eles jogaram o beb para fora com a gua do banho. Qualquer conversa sobre transformao social e cultural ou a ser suspeita. Lutar por justia virou uma distrao da pregao do evangelho. Para este grupo, a igreja deve se retirar da cultura secular e se concentrar exclusivamente na santidade pessoal e no evangelismo.
O que foi perdido neste episdio trgico foi a histrica teologia bblica de justia e engajamento cultural, uma abordagem ao ministrio que une o anncio do evangelho e o discipulado ao impacto social e cultural.
O debate de hoje sobre justia social na igreja evanglica parece assustadoramente semelhante ao debate que levou diviso na igreja protestante ocidental no incio do sculo XX, com o recrudescimento do fundamentalismo. As tendncias extremas permanecem, o pndulo continua a girar de lado a lado, e as polarizaes voltam. O Histria se repete, e a igreja no aprende.
Consideraes sobre o Statement
Reconhecemos a grande contribuio e o imenso legado deixado por alguns lderes que am o Statement, assim como reforamos que a maioria das afirmaes, especialmente as de ordem dogmtica acerca das verdades fundamentais da f crist, est correta e reflete a ortodoxia bblica. Nos entanto, destacamos humildemente aqui ao menos dois fragmentos problemticos do texto, que podem trazer srias implicaes para a Misso da Igreja, seu engajamento social e seu trabalho de Discipulado da Nao, especialmente num pas como o nosso, repleto de desigualdades e injustias. So eles:
Sesso 8 (A Igreja):
Ns enfaticamente negamos que ensinos acerca de questes sociais ou ativismos que visam remodelar a cultura so to vitais para a vida e a sade da igreja quanto a pregao do evangelho e a exposio das Escrituras. Historicamente, tais coisas tendem a se tornar distores que inevitavelmente levam ao abandono do evangelho.
Sesso 14 (Racismo):
Ns enfaticamente negamos que o ativismo sociopoltico deve ser visto como um componente integral do evangelho ou como primrios Misso da Igreja. Embora os crentes podem e devem utilizar todos os meios legais que Deus providencialmente estabeleceu para ter algum efeito sobre leis de uma sociedade, ns negamos que estas atividades constituam, nem evidncia de f salvadora, ou constituam uma parte central da misso da igreja dada a ela por Jesus Cristo, seu Cabea. Ns negamos que leis e regulamentos possuam qualquer poder inerente para mudar coraes pecaminosos.
Isso chega muito perto de dizer que cuidar dos pobres, lutar contra o racismo, o aborto, o trfico humano, o abuso sexual de crianas, a violncia contra mulher, a letalidade da juventude, etc., uma atividade de segunda linha e uma distrao do Evangelho. Phil Johnson, um colaborador prximo de John MacArthur, chegou a afirmar que: ganhar a cultura, engajar a cultura, mudar a cultura to ambgua quanto ela , a prpria linguagem significa que a abandono da misso j est em andamento.
Para Johnson, trabalhar pela transformao social e cultural reflete a "abandono da misso". Essa outra maneira de dizer "uma distrao" da misso central da igreja - a proclamao do evangelho. Significa tambm a negao da histria de reformadores sociais cristos: Amy Carmichael, William Wilberforce, William Carey, entre outros.
Ns j ouvimos isso antes, e o resultado no sculo XX foi a reduo do escopo da Misso no Sculo XX e a perda da batalha cultural no mundo ocidental.
Podemos apontar diversos problemas com estes fragmentos do Statement. Percebe-se uma falta de anlise contextual das Escrituras e a desconsiderao da necessidade de uma mediao socioanaltica contextualizada. Cremos que a Verdade de Deus eterna, imutvel, supracultural e supratemporal, mas a elaborao desta Verdade, ou seja, sua interpretao e aplicao se do em contexto, no tempo e na histria.
Paul Hiebert, missilogo, afirma que toda igreja precisa desenvolver uma teologia contextual, que faa sentido em sua cultura e que responda a questes de relevncia cultural. No podemos apregoar o amor de Deus e ignorar a iniquidade estrutural e sistmica de sociedades profundamente fundamentadas na desigualdade e excluso. No decorrer da histria da Igreja, h vrias evidncias de diferentes elaboraes teolgicas, missiolgicas e eclesiolgicas, elaboradas de acordo com contextos e situaes diferentes, ou em reao a realidades sociopolticas de dominao e excluso (por exemplo, a igreja donatista, no norte da frica).
Outra questo profundamente problemtica no Statement o fato de, se no ignorar, pelo menos minimizar o aspecto coletivo da obra redentora de Cristo. Segundo Scott Allen (DNA), a Cruz de Cristo tem aplicao tanto pessoal quanto cultural. H um paralelo entre o processo de salvao individual (justificao, santificao e glorificao) e o processo social e global do avano do Reino (a cruz, a Grande Comisso e o Discipulado das Naes, e a consumao dos sculos). Ambas as implicaes so, num mesmo sentido, processos de 3 os. Ambas fluem do trabalho consumado de Cristo na cruz, e sua vitria sobre o mal. A primeira (individual) torna possvel a segunda (social / global). Em ambos os casos, o pedao do meio (santificao pessoal e o discipulado pblico das naes) um processo complexo de vitrias e fracassos, avanos e retrocessos, altos e baixos, em que vivemos como novas criaturas em um mundo ainda cado.
A dimenso coletiva do pecado, negligenciada na Declarao, reafirmada de vrias formas nas Escrituras, tanto no Antigo Testamento como no Novo. Assim, vemos a advertncia de Ezequiel (Eis que esta foi a iniquidade de Sodoma, tua irm: soberba, fartura de po, e prspera ociosidade teve ela e suas filhas; mas nunca fortaleceu a mo do pobre e do necessitado 16:49), e o prprio Jesus tratando o pecado coletivamente, referindo-se a cidades inteiras. Ai de ti, Corazin! ai de ti, Betsaida! porque, se em Tiro e em Sidom, se tivessem operado os milagres que em vs se operaram, h muito elas se teriam arrependido em cilcio e em cinza (Mateus 11:21); Jerusalm, Jerusalm, que matas os profetas, e apedrejas os que a ti so enviados! Quantas vezes quis eu ajuntar os teus filhos, como a galinha ajunta a sua ninhada debaixo das asas, e no quiseste! (Lucas 13:34).
Percebe-se, ento, que o que est em jogo entre o debate sobre a preponderncia do pecado (ou da dimenso da salvao) individual versus coletiva talvez seja o mesmo debate indivduo & sociedade das cincias sociais, que, ao negar a busca do equilbrio, reduz a leitura de mundo e, consequentemente, a missiologia crist.
O Movimento internacional DNA Disciple Nations Alliance, que est ativo no Brasil, afirma que a Justia um produto da cultura do reino. Significa fazer o que certo para os outros, e reparar o que est errado. O movimento advoga uma viso bblica e equilibrada de Justia, rompendo com o dualismo sagrado versus secular que conduz ao reducionismo fundamentalista, sem abraar ideologias humanistas na concepo de justia social.
Timothy Keller nos instrui que, para andarmos com Deus, temos de fazer justia, com amor misericordioso. O termo Justia (mishpat), em suas vrias formas, ocorre mais de duzentas vezes no Antigo Testamento Hebraico. De acordo com seu significado mais bsico, devemos tratar as pessoas com imparcialidade. Mishpat significa absolver ou punir cada pessoa nos mritos do caso, independentemente da raa ou posio social. As pessoas que cometerem o mesmo erro devem receber a mesma punio. Contudo, mishpat significa mais do que punio justa pelo erro cometido. Significa assegurar os direitos de cada um. Mishpat, dar s pessoas o que lhes devido, seja punio, seja proteo ou cuidado. Conforme a Bblia, a mishpat, ou a justia, de uma sociedade avaliada de acordo com o tratamento dado a esses grupos. Qualquer negligncia em relao s necessidades de quem faz parte desse quarteto no simplesmente falta de misericrdia ou caridade, mas violao da justia, da mishpat. Deus ama e defende quem tem menos poder econmico e social, e devemos agir da mesma forma. esse o significado de fazer justia. (KELLER, p. 24 a 26)
O conceito de Justia Social no encontrado, nestes termos, nas Escrituras, mas est claramente ancorado na narrativa bblica. Miller (2015) nos traz um resgate histrico do termo, iniciando com Toms de Aquino, que utilizou o termo justia geral, trazendo a noo do direcionamento do homem para o bem comum, e no apenas o seu prprio bem. Em 1840, o jesuta italiano Luigi Taparelli Dazeglio, a partir do conceito de Aquino, cunhou o termo justia social, em resposta s profundas transformaes que aconteciam em decorrncia da Revoluo Industrial. Na perspectiva de Taparelli, o conceito de justia social estava enraizado na liberdade e no respeito pelos seres humanos e na habilidade de uma sociedade em permitir que a famlia, a igreja e as organizaes e associaes de base comunitria florescessem, para o bem da coletividade. Suas ideias influenciaram tambm a encclica Rerum Novarum, do Papa Leo XIII, de 1891. Embora hoje, muitas vezes, o termo justia social possa estar associado apenas ao discurso de esquerda e de aes do Estado para redistribuio da riqueza, sua origem tem base teolgica e crist.
No vamos repetir o trgico erro da Igreja ocidental do incio do sculo XX. A necessidade urgente de hoje, como era naquela poca, recuperar uma abordagem bblica e ortodoxa da justia e do engajamento cultural.
Fontes:
- Abraando uma teologia de unidade na diversidade: Lies da histria da igreja no norte da frica Mons Gumar Selsto e Frank-Ole Thoresen, Ultimato.
- CUNHA, Mauricio. O Reino de Deus e a transformao social: fundamentos, princpios e ferramentas. Viosa: Ultimato, 2018.
- KELLER, Timothy. Justia Generosa: a graa de Deus e a justia social. So Paulo: Vida Nova, 2013.
- MILLER, Darrow. Rethinking Social Justice: restoring biblical comion. Seattle: YWAM Publishing, 2015
- Notas de Scott Allen, DNA Disciple the Nations Alliance
Mauricio Jos da Silva Cunha engenheiro agrnomo, de empresas e mestre em antropologia social. fundador e presidente do Centro de Assistncia e Desenvolvimento Integral (CADI). autor dos livros O Reino de Deus e a Transformao Social, O Reino entre Ns e Cosmoviso Crist e Transformao. assessor da Aliana Evanglica Brasileira e conselheiro nacional de assistncia social.
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A luta pela justia social tem respaldo bblico?

Fazei justia ao fraco e ao rfo, procedei retamente para com o aflito e o desamparado. (Salmos 82:3)
Antes, corra o juzo como as guas; e a justia, como ribeiro perene. (Ams 5:24)
O tema da justia social e sua relao com a Misso sempre foi alvo de controvrsias na Igreja. A discusso sobre as questes relativas Justia e transformao se inserem num contexto mais amplo, da relao da Igreja com a cultura abrangente, evocando diferentes concepes teolgicas e filosficas. Recentemente, a polmica foi aguada nos Estados Unidos, com a publicao do texto Statement on Social Justice and the Gospel, apoiado por John MacArthur, Douglas Wilson, Voddie Baucham, entre outros lderes cristos.
Mais de 4.500 pastores americanos am a Declarao, denunciando o chamado evangelho da justia social.
Este artigo apresenta um contraponto, em face da relevncia do tema para a Igreja brasileira, a nossa realidade social, e as srias implicaes que a disseminao deste contedo pode trazer para a Misso da Igreja e as iniciativas e organizaes de base crist que atuam na rea da Justia Social.
A Declarao constitui mais um captulo desta grande controvrsia nos EUA, colocando em polos opostos o grupo defensor da Justia Social e o grupo mais conservador e fundamentalista da igreja americana, especialmente nas questes relativas ao racismo. Ela uma resposta ao movimento da Justia Social, que v o racismo no prprio DNA da Amrica, acreditando na primazia da identidade de grupo baseada na cor da pele (assim, seu uso sem remorso da frase privilgio branco), juntamente com uma sociologia que v o mundo como uma luta de poder de soma zero entre grupos tnicos (ou seja, se um ganha, porque o outro est perdendo). Embora esta seja uma questo tambm latente no Brasil, no nosso caso, talvez, pudssemos traar um paralelo com a questo da luta de classes e da desigualdade social, e no apenas racial.
Segundo Scott Allen (DNA), h diversos pontos positivos no chamado evangelho social norte-americano, entre eles a preocupao com questes sociais, como a pobreza, o racismo e a situao do refugiado; o anseio por ver as comunidades florescerem, e a no-adoo uma teologia antibblica, prejudicada pelo dualismo sagrado-secular. Ou seja, os defensores do evangelho social acreditam que a igreja dever estar engajada na cultura, lutando contra a injustia e trabalhando para libertar os empobrecidos e oprimidos.
No entanto, pesa contra esta corrente de pensamento uma questo fundamental, que adoo acrtica de algumas suposies sobre justia social provenientes da cultura mais ampla e sem respaldo bblico. Inadvertidamente, permitiu-se que suposies seculares informassem sua teologia do engajamento cultural. Como exemplo, sua mentalidade antibblica bem captada nesta citao do defensor do evangelho social, o jornalista Horace Greeley:
O corao do homem no depravado. . . suas paixes no induzem a fazer errado e, portanto, por suas aes, no produzem o mal. O mal s flui da desigualdade social. D [pessoas] escopo completo, liberdade, um desenvolvimento perfeito e completo, e a felicidade universal deve ser o resultado ... cria uma nova forma de sociedade na qual isso ser possvel. . . ento voc ter a sociedade perfeita; ento voc ter o Reino dos Cus.
Vemos aqui uma negao do pecado inerente ao corao humano como resultado da Queda, ignorando a dimenso individual da salvao. A confuso sobre a justia precisa ser substituda por um cuidadoso discernimento das diferenas fundamentais entre a justia bblica e a justia social nos termos mundanos ou meramente humanistas.
O problema com esta corrente da justia social no sua paixo em engajar a cultura e lutar pela justia, mas a ideologia antibblica que, muitas vezes, vem no mesmo pacote.
A Histria se repete
Em resposta ao movimento do evangelho social e suas concepes humanistas, o movimento fundamentalista levantou-se para defender o evangelho e o ensino bblico ortodoxo, condenando os defensores do evangelho social por seu ensino supostamente hertico. Mas ao faz-lo, eles jogaram o beb para fora com a gua do banho. Qualquer conversa sobre transformao social e cultural ou a ser suspeita. Lutar por justia virou uma distrao da pregao do evangelho. Para este grupo, a igreja deve se retirar da cultura secular e se concentrar exclusivamente na santidade pessoal e no evangelismo.
O que foi perdido neste episdio trgico foi a histrica teologia bblica de justia e engajamento cultural, uma abordagem ao ministrio que une o anncio do evangelho e o discipulado ao impacto social e cultural.
O debate de hoje sobre justia social na igreja evanglica parece assustadoramente semelhante ao debate que levou diviso na igreja protestante ocidental no incio do sculo XX, com o recrudescimento do fundamentalismo. As tendncias extremas permanecem, o pndulo continua a girar de lado a lado, e as polarizaes voltam. O Histria se repete, e a igreja no aprende.
Consideraes sobre o Statement
Reconhecemos a grande contribuio e o imenso legado deixado por alguns lderes que am o Statement, assim como reforamos que a maioria das afirmaes, especialmente as de ordem dogmtica acerca das verdades fundamentais da f crist, est correta e reflete a ortodoxia bblica. Nos entanto, destacamos humildemente aqui ao menos dois fragmentos problemticos do texto, que podem trazer srias implicaes para a Misso da Igreja, seu engajamento social e seu trabalho de Discipulado da Nao, especialmente num pas como o nosso, repleto de desigualdades e injustias. So eles:
Sesso 8 (A Igreja):
Ns enfaticamente negamos que ensinos acerca de questes sociais ou ativismos que visam remodelar a cultura so to vitais para a vida e a sade da igreja quanto a pregao do evangelho e a exposio das Escrituras. Historicamente, tais coisas tendem a se tornar distores que inevitavelmente levam ao abandono do evangelho.
Sesso 14 (Racismo):
Ns enfaticamente negamos que o ativismo sociopoltico deve ser visto como um componente integral do evangelho ou como primrios Misso da Igreja. Embora os crentes podem e devem utilizar todos os meios legais que Deus providencialmente estabeleceu para ter algum efeito sobre leis de uma sociedade, ns negamos que estas atividades constituam, nem evidncia de f salvadora, ou constituam uma parte central da misso da igreja dada a ela por Jesus Cristo, seu Cabea. Ns negamos que leis e regulamentos possuam qualquer poder inerente para mudar coraes pecaminosos.
Isso chega muito perto de dizer que cuidar dos pobres, lutar contra o racismo, o aborto, o trfico humano, o abuso sexual de crianas, a violncia contra mulher, a letalidade da juventude, etc., uma atividade de segunda linha e uma distrao do Evangelho. Phil Johnson, um colaborador prximo de John MacArthur, chegou a afirmar que: ganhar a cultura, engajar a cultura, mudar a cultura to ambgua quanto ela , a prpria linguagem significa que a abandono da misso j est em andamento.
Para Johnson, trabalhar pela transformao social e cultural reflete a "abandono da misso". Essa outra maneira de dizer "uma distrao" da misso central da igreja - a proclamao do evangelho. Significa tambm a negao da histria de reformadores sociais cristos: Amy Carmichael, William Wilberforce, William Carey, entre outros.
Ns j ouvimos isso antes, e o resultado no sculo XX foi a reduo do escopo da Misso no Sculo XX e a perda da batalha cultural no mundo ocidental.
Podemos apontar diversos problemas com estes fragmentos do Statement. Percebe-se uma falta de anlise contextual das Escrituras e a desconsiderao da necessidade de uma mediao socioanaltica contextualizada. Cremos que a Verdade de Deus eterna, imutvel, supracultural e supratemporal, mas a elaborao desta Verdade, ou seja, sua interpretao e aplicao se do em contexto, no tempo e na histria.
Paul Hiebert, missilogo, afirma que toda igreja precisa desenvolver uma teologia contextual, que faa sentido em sua cultura e que responda a questes de relevncia cultural. No podemos apregoar o amor de Deus e ignorar a iniquidade estrutural e sistmica de sociedades profundamente fundamentadas na desigualdade e excluso. No decorrer da histria da Igreja, h vrias evidncias de diferentes elaboraes teolgicas, missiolgicas e eclesiolgicas, elaboradas de acordo com contextos e situaes diferentes, ou em reao a realidades sociopolticas de dominao e excluso (por exemplo, a igreja donatista, no norte da frica).
Outra questo profundamente problemtica no Statement o fato de, se no ignorar, pelo menos minimizar o aspecto coletivo da obra redentora de Cristo. Segundo Scott Allen (DNA), a Cruz de Cristo tem aplicao tanto pessoal quanto cultural. H um paralelo entre o processo de salvao individual (justificao, santificao e glorificao) e o processo social e global do avano do Reino (a cruz, a Grande Comisso e o Discipulado das Naes, e a consumao dos sculos). Ambas as implicaes so, num mesmo sentido, processos de 3 os. Ambas fluem do trabalho consumado de Cristo na cruz, e sua vitria sobre o mal. A primeira (individual) torna possvel a segunda (social / global). Em ambos os casos, o pedao do meio (santificao pessoal e o discipulado pblico das naes) um processo complexo de vitrias e fracassos, avanos e retrocessos, altos e baixos, em que vivemos como novas criaturas em um mundo ainda cado.
A dimenso coletiva do pecado, negligenciada na Declarao, reafirmada de vrias formas nas Escrituras, tanto no Antigo Testamento como no Novo. Assim, vemos a advertncia de Ezequiel (Eis que esta foi a iniquidade de Sodoma, tua irm: soberba, fartura de po, e prspera ociosidade teve ela e suas filhas; mas nunca fortaleceu a mo do pobre e do necessitado 16:49), e o prprio Jesus tratando o pecado coletivamente, referindo-se a cidades inteiras. Ai de ti, Corazin! ai de ti, Betsaida! porque, se em Tiro e em Sidom, se tivessem operado os milagres que em vs se operaram, h muito elas se teriam arrependido em cilcio e em cinza (Mateus 11:21); Jerusalm, Jerusalm, que matas os profetas, e apedrejas os que a ti so enviados! Quantas vezes quis eu ajuntar os teus filhos, como a galinha ajunta a sua ninhada debaixo das asas, e no quiseste! (Lucas 13:34).
Percebe-se, ento, que o que est em jogo entre o debate sobre a preponderncia do pecado (ou da dimenso da salvao) individual versus coletiva talvez seja o mesmo debate indivduo & sociedade das cincias sociais, que, ao negar a busca do equilbrio, reduz a leitura de mundo e, consequentemente, a missiologia crist.
O Movimento internacional DNA Disciple Nations Alliance, que est ativo no Brasil, afirma que a Justia um produto da cultura do reino. Significa fazer o que certo para os outros, e reparar o que est errado. O movimento advoga uma viso bblica e equilibrada de Justia, rompendo com o dualismo sagrado versus secular que conduz ao reducionismo fundamentalista, sem abraar ideologias humanistas na concepo de justia social.
Timothy Keller nos instrui que, para andarmos com Deus, temos de fazer justia, com amor misericordioso. O termo Justia (mishpat), em suas vrias formas, ocorre mais de duzentas vezes no Antigo Testamento Hebraico. De acordo com seu significado mais bsico, devemos tratar as pessoas com imparcialidade. Mishpat significa absolver ou punir cada pessoa nos mritos do caso, independentemente da raa ou posio social. As pessoas que cometerem o mesmo erro devem receber a mesma punio. Contudo, mishpat significa mais do que punio justa pelo erro cometido. Significa assegurar os direitos de cada um. Mishpat, dar s pessoas o que lhes devido, seja punio, seja proteo ou cuidado. Conforme a Bblia, a mishpat, ou a justia, de uma sociedade avaliada de acordo com o tratamento dado a esses grupos. Qualquer negligncia em relao s necessidades de quem faz parte desse quarteto no simplesmente falta de misericrdia ou caridade, mas violao da justia, da mishpat. Deus ama e defende quem tem menos poder econmico e social, e devemos agir da mesma forma. esse o significado de fazer justia. (KELLER, p. 24 a 26)
O conceito de Justia Social no encontrado, nestes termos, nas Escrituras, mas est claramente ancorado na narrativa bblica. Miller (2015) nos traz um resgate histrico do termo, iniciando com Toms de Aquino, que utilizou o termo justia geral, trazendo a noo do direcionamento do homem para o bem comum, e no apenas o seu prprio bem. Em 1840, o jesuta italiano Luigi Taparelli Dazeglio, a partir do conceito de Aquino, cunhou o termo justia social, em resposta s profundas transformaes que aconteciam em decorrncia da Revoluo Industrial. Na perspectiva de Taparelli, o conceito de justia social estava enraizado na liberdade e no respeito pelos seres humanos e na habilidade de uma sociedade em permitir que a famlia, a igreja e as organizaes e associaes de base comunitria florescessem, para o bem da coletividade. Suas ideias influenciaram tambm a encclica Rerum Novarum, do Papa Leo XIII, de 1891. Embora hoje, muitas vezes, o termo justia social possa estar associado apenas ao discurso de esquerda e de aes do Estado para redistribuio da riqueza, sua origem tem base teolgica e crist.
No vamos repetir o trgico erro da Igreja ocidental do incio do sculo XX. A necessidade urgente de hoje, como era naquela poca, recuperar uma abordagem bblica e ortodoxa da justia e do engajamento cultural.
Fontes:
- Abraando uma teologia de unidade na diversidade: Lies da histria da igreja no norte da frica Mons Gumar Selsto e Frank-Ole Thoresen, Ultimato.
- CUNHA, Mauricio. O Reino de Deus e a transformao social: fundamentos, princpios e ferramentas. Viosa: Ultimato, 2018.
- KELLER, Timothy. Justia Generosa: a graa de Deus e a justia social. So Paulo: Vida Nova, 2013.
- MILLER, Darrow. Rethinking Social Justice: restoring biblical comion. Seattle: YWAM Publishing, 2015
- Notas de Scott Allen, DNA Disciple the Nations Alliance
Mauricio Jos da Silva Cunha engenheiro agrnomo, de empresas e mestre em antropologia social. fundador e presidente do Centro de Assistncia e Desenvolvimento Integral (CADI). autor dos livros O Reino de Deus e a Transformao Social, O Reino entre Ns e Cosmoviso Crist e Transformao. assessor da Aliana Evanglica Brasileira e conselheiro nacional de assistncia social.
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