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BBB21: “O homem o lobo do homem”: de Thomas Hobbes ao BBB21 521155

PorGuilherme de Carvalho
A vida uma misso a ser buscada, no uma srie de limitaes das quais se emancipar (Christian Smith)
Vrios colegas, na lida semanal de comentar os acertos e desacertos da mente brasileira, j abriram suas colunas desculpando-se por escrever sobre o BBB21, depois de haverem silenciado sem sucesso todas as palavras associadas ao programa, jurando de ps juntos que no o assistem, que s ouviram falar, etecetera. No sou exceo nisso, mas no tenho como prov-lo; s me resta repetir as mesmas apologias a ouvidos incrus.
Enfim, pelo dever do ofcio, confesso ter espiado alguns excertos; citaes e trechos de vdeos esquecidos pelas mdias sociais. ito: o fiz com alguma curiosidade, mas me restringi aos trechos mais populares, depois de uma filha garantir que se tratava de um experimento antropolgico.
Quis ignorar a coisa toda, mas a tentao foi demais para minhas concupiscncias crticas. O fato que os primeiros dias do circo foram representaes emblemticas de um problema endmico, h muito apontado na militncia identitria, mas cinicamente ignorado pelo esforo de propaganda moral que hoje unifica a publicidade, a imprensa e as comunicaes, e o movimento de direitos humanos. Esse problema tem relao com o discurso emancipatrio moderno, que se tornou nitidamente patolgico.
A despeito da glorificao que a narrativa de pecado e redeno do identitarismo recebe, a sua performance ao vivo no reality show mostrou de forma impiedosa o quanto se trata de uma narrativa ridiculamente feia
Wilson Gomes, professor de Teoria da Comunicao na UFBA, proferiu algumas das palavras mais lcidas sobre o assunto, para uma entrevista da BBC News: BBB21: Esquerda criou palco, ganhou espelho e no gostou do que viu, diz filsofo sobre o reality. O filsofo, que no nenhum simpatizante da direita, relembrou algumas das mais belas prolas do programa: Ele sujinho. Se esfregar bem... (Carol Conk sobre Gilberto Nogueira, por ter se declarado negro); Lucas t usando os pretos para se autopromover. Primeiro foi uma agenda racial e agora uma agenda LGBT. Eu no fico falando da minha mulher e que sou sapato (psicloga social Lumena sobre Lucas Penteado). Foi de Lumena Aleluia a prola referindo-se atriz Carla Diaz: Eu nem gosto dessa coisa sem melanina... Sei l, desbotada, tal... Olho, olho estranho... Olho de boneca, sabe? Boneca assassina!
Enfim, dois exemplos do que foi um confuso processo de competio, desqualificao e marginalizao de pessoas que, supostamente, seriam representantes inferiores ou falsos representantes das agendas identitrias que, supostamente, elevariam o crdito moral dos representantes mais puros da identidade negra, ou feminina, ou LGBTQI+ e, com isso, os mais aptos ao plpito moral.
O plpito moral do identitarismo
O problema no est na existncia de um plpito moral, mas na qualidade desse plpito. O identitarismo um movimento profundamente moral: respeito, equidade, igualdade, orgulho, direito, sororidade, pluralismo; sua linguagem , inequivocamente, uma linguagem moral.
Mas a moralidade que ele cultiva nitidamente patolgica. Guarda semelhanas com o legalismo farisaico, to presente em setores do judasmo e do cristianismo, no qual o orgulho moral se associa com um desprezo julgador contra os fracassados morais; traz o mesmo elemento e puritanismo e de represso.
Antes fosse s isso; a moralidade do identitarismo parece resultar no de uma submisso cega a um legislador ou da crena numa revelao divina, mas de uma inflexvel luta emancipatria, cujas armas so o poder da autoafirmao e o direito ao reconhecimento. A libertao se d por meio do empoderamento e da autoexpresso, e seu sinal o orgulho de si. O opressor deve se desculpar de seus privilgios e se humilhar, e o ex-oprimido deve cultivar uma rgida moralidade da autenticidade e da autoafirmao, demonstrando o orgulho de ser quem . Ao mesmo tempo, falsificaes devem ser imediatamente confrontadas e expostas, o que foi feito impiedosamente ao longo do programa.
A vida definida como uma srie de cadeias das quais se emancipar, a sociedade como um sistema de foras que impede a emancipao, a glria moral como a capacidade de vencer a todos, saindo do armrio e expressando poderosamente a sua prpria essncia: essa a narrativa de pecado e redeno do identitarismo. Mas, a despeito da glorificao que ela recebe na academia, na imprensa e no entretenimento contemporneo, a sua performance ao vivo no reality show mostrou de forma impiedosa o quanto se trata de uma narrativa ridiculamente feia.
Conforme j dissemos em uma variedade de oportunidades, essa concepo de vida tem sido chamada de individualismo expressivo. uma verso ps-moderna do humanismo moderno, com sua nfase na grandeza do homem, na racionalidade e na autonomia individual. A partir do movimento romntico, esse ideal converteu-se num ideal sentimental de autoexpresso; e assim chegamos a esse processo de centramento subjetivo (segundo Charles Taylor), e a essa cultura teraputica (nas palavras de Philip Rieff) na qual tudo a poltica, o mercado de consumo, a tecnologia e o entretenimento gira ao redor do Self. Tudo existe para que ele se expresse, encontre reconhecimento e seja agradado.
Cabe aqui um esclarecimento: o feminismo de primeira onda, o movimento negro e o movimento dos direitos civis no so o mesmo que o individualismo expressivo. Nunca demais lembrar que Martin Luther King era um telogo cristo e um representante do personalismo cristo, e que seu movimento anterior emergncia das modernas polticas identitrias, nos anos 1970. O identitarismo moderno emerge quando se d uma psicologizao da luta por direitos civis, e uma fuso do pensamento progressista com a mentalidade teraputica. Mark Lilla conta uma parte dessa histria em O Progressista de Ontem e o de Amanh (de 2019).
Assim, o liberalismo poltico moderno se tornou o brao poltico do octpode. A poltica liberal ps seu foco no reforo e na reverberao das manifestaes de orgulho e de autoafirmao identitria. E, quando finalmente lanou sua influncia sobre o movimento internacional de direitos humanos, tornou-se uma psicopoltica universal.
No seria imprprio nomear essa forma de militncia poltica progressista como um liberalismo expressivo mesmo que seja defendida por pessoas e partidos de esquerda ou socialistas. Mas por que o liberalismo expressivo a moralidade do identitarismo contemporneo to ruim?
O lobo do homem... No BBB21
Se algo fica bem claro no que foi chamado de Coliseu global, que vrios participantes se ocupam basicamente de engolir uns aos outros. Algum mencionou que as intrigas amorosas foram substitudas por tretas contnuas, todas assentadas sobre o esforo de autoafirmao pblica. A explicao fcil : a Globo ajuntou pessoas de carter ruim. Mas por que as piores parecem ser justamente as mais politizadas? Tenho uma sugesto a respeito.
Thomas Hobbes props, no clssico poltico Leviat (1651), que os homens, no estado de natureza, estariam em guerra permanente uns contra os outros, guerra essa motivada pelo medo e justificada pelo direito natural de autodefesa. A guerra preventiva contnua de todos contra todos seria a regra da condio natural, feita de misria, doena e violncia. Homo homini lupus, o homem o lobo do homem, foi a famosa expresso de Plauto popularizada por Hobbes.
A soluo: o contrato social entre os indivduos, a forma justa e verdadeira de fundar a sociedade sobre o direito e a igualdade dos homens. O contrato social seria o fiat, o faa-se que cria a ordem social e estabelece as regras de convivncia entre os homens. O que nasce desse contrato seria o Leviat o Estado.
O identitarismo moderno emerge quando se d uma psicologizao da luta por direitos civis, e uma fuso do pensamento progressista com a mentalidade teraputica
A ideia central do contrato de indivduos uma das pedras fundamentais do pensamento poltico moderno e do liberalismo poltico, e se tornou uma grande viso utpica: j que a sociedade traz diversas heranas de desigualdade, de coeres morais, de hierarquias injustas e sistemas de opresso (supostamente herdadas do velho estado de natureza), a constituio de uma ordem poltica baseada unicamente nas regras do contrato, dissolvendo todos os costumes, padres e estruturas no previstas nesse contrato, e privilegiando o direito de cada indivduo nesse contrato, seria a melhor forma de garantir a liberdade, a igualdade e a justia para todos.
Mas h um problema com essa narrativa.
Em Por que o Liberalismo Fracassou, Patrick Deneen observou que a utopia individualista do contrato social ps em movimento um longo processo de reorganizar o Estado e a sociedade imaginando-a como uma massa de indivduos atomizados, que precisa ser reconciliada e unificada por meio das leis. Essa reorganizao no incua; ao imaginar erroneamente como o ser humano funciona, seu remdio se torna um veneno.
A mentalidade do contrato ignora que, antes do Estado moderno, as pessoas no viviam no estado de natureza, mas aprendiam seus direitos e deveres em diversas formas de associao humana como a famlia, a religio, a guilda e a sociedade profissional, a vila, e assim por diante. As regras e hierarquias impostas para a comunicao, o respeito entre parentes, a atividade profissional e acadmica, e a participao na igreja limitavam os indivduos, educavam seus instintos e oportunizavam a formao de virtudes. Digamos que, independentemente das ideias modernas de contrato, sempre houve uma ecologia social, ou um tecido cultural.
Mas, na medida em que as regras da convivncia humana so refeitas, por um longussimo processo de reconstruo poltica e econmica das relaes humanas, a ecologia social antiga destruda. As novas regras, com foco na autonomia absoluta do indivduo, dispensam a necessidade do pertencimento comunitrio, do compartilhamento de valores morais comuns, do respeito e compromisso com a famlia, com o casamento, com os filhos, e com os axiomas da religio, e so cada vez mais determinadas pelo laissez-faire emocional, pelo clculo de ganhos e pela regra narcisista do bem-estar pessoal acima de tudo.
Com isso, as pessoas progressivamente perdem os contextos de formao moral, de construo de virtude e de hbitos de respeito. No se aprende a respeitar os outros lendo livros e frequentando aulas na faculdade. Essas virtudes so construdas em contextos comunitrios, nos quais comportamentos ruins so identificados e reprovados, e nos quais a coero moral exerce um papel formativo.
Mas na cultura W.E.I.R.D. a cultura narcisista, centrada na autonomia, autoexpresso e autorrealizao pessoal so poucos os espaos de aprendizado. A prpria educao liberal, centrada no protagonismo e no bem-estar dos estudantes, e recusando-se a impor regras morais sobre eles, agudiza ainda mais o narcisismo moderno.
Nos termos da sociologia de Arnold Gehlen, o liberalismo moderno produz um estado contnuo de desinstitucionalizao, problematizando e dissolvendo sistematicamente as regras e valores compartilhados, para garantir o mximo de pluralismo e garantir que ningum se sinta oprimido ou impedido de se expressar autenticamente. Essa utopia seria alcanada, supostamente, pelo avano civilizatrio e pelas novas regras impostas goela abaixo pela legislao ou, quando ela lenta, pelo ativismo judicial.
No se aprende a respeitar os outros lendo livros e frequentando aulas na faculdade. Essas virtudes so construdas em contextos comunitrios, nos quais comportamentos ruins so identificados e reprovados, e nos quais a coero moral exerce um papel formativo
Mas, se as regras da convivncia humana no nascem do contrato social ou do Estado, e sim da ecologia social humana, e das vivncias comunitrias e espirituais mais prximas do indivduo, claro que o efeito desse processo ser exatamente o oposto. Quanto menor o compartilhamento de regras e valores, maior a ansiedade, menor a espontaneidade, menor a confiana entre as pessoas e maior a possibilidade de conflito. Quanto mais os indivduos estiverem ocupados com sua autoafirmao, mais defensivos e conflitivos eles sero; mais inclinados a desconfiar dos outros e a agir preventivamente contra os outros, para se garantir.
Mas o que uma sociedade na qual todos desconfiam de todos e todos so guiados pelo autointeresse, a no ser... o estado de natureza hobbesiano? Patrick Deneen chama isso corretamente de anticultura liberal. Toda a teia de valores, relaes e instituies que estabiliza a convivncia entre as pessoas desmantelada para que os indivduos sejam livres de coeres. Mas, ento, a base comum para a comunicao e a ao espontnea destruda, e o homem se torna o lobo do homem.
O liberalismo... compreende a liberdade como uma condio na qual cada um pode agir livremente numa esfera sem restrio da lei positiva. Esse conceito efetivamente cria o que era meramente terico em seu imaginado estado de natureza, formando um mundo no qual a teoria do individualismo humano natural se torna cada vez mais uma realidade, agora assegurada pela arquitetura da lei, da poltica, da economia e da sociedade. Sob o liberalismo, os seres humanos vivem crescentemente numa condio de autonomia na qual a ameaadora anarquia de nossa alegada condio natural controlada e suprimida pela imposio de leis e pelo correspondente crescimento do Estado... O liberalismo culmina, assim, em dos pontos ontolgicos: o indivduo liberado e o estado controlador. O Leviat de Hobbes retratava perfeitamente essas realidades...
Quanto mais os indivduos estiverem ocupados com sua autoafirmao, mais defensivos e conflitivos eles sero; mais inclinados a desconfiar dos outros e a agir preventivamente contra os outros, para se garantir
Em outras palavras: o liberalismo e o ideal de contrato criam as condies que eles pretendem curar; arrasam o tecido social e o reparam por meio do aumento da proliferao de leis, da vigilncia contnua e da gesto da psicologia das massas. Por isso Patrick Deneen, seguindo nisso a opinio anterior de Robert Nisbet, ligou os pontos e acusou o liberalismo de ser uma das causas involuntrias dos totalitarismos e das grandes guerras do sculo 20.
Mas voltemos ao BBB21: o que temos ali? Um microcosmo. Ali vemos mais do que a m escolha da Globo ou, como se sugeriu, um perverso estratagema da companhia para descredibilizar o movimento negro brasileiro. O que temos no reality so pessoas expostas diretamente ao veneno do liberalismo expressivo, pondo pra fora sua toxicidade. E o que vemos , precisamente, o estado de natureza vindo tona. De certa forma, esse estado de natureza hobbesiano no uma arqueologia, mas uma profecia que o liberalismo expressivo est se esforando para cumprir.
claro que h inmeras injustias em todas as sociedades humanas, e o racismo uma das piores em nosso Brasil. O problema que o remdio do liberalismo expressivo txico. A sua proposta para constituio da identidade afasta as pessoas umas das outras. Ele rompe a solidariedade e submerge o sentido de coletividade e de bem comum sob o autointeresse. uma espcie de acelerador do narcisismo ainda que suas intenes sejam outras.
E isso nos leva diretamente ao cerne do problema:
No assim que se constitui a identidade
O que est errado com as prticas de formao moral dos coletivos identitrios?
O que acontece que, no vcuo espiritual criado pelo liberalismo expressivo, o indivduo no tem fontes morais suficientes para alimentar sua relao com os outros. Em vez de basear sua identidade em relaes positivas, precisa construi-la sobre uma abstrao ideolgica. O resultado esse estado de natureza psiquitrico, com seres humanos agindo como lobos morais uns dos outros.
Penso que h aqui dois erros mais ou menos entrelaados. Pessoas sobre as quais esses movimentos tm poder formativo parecem se esforar bastante para estabelecer sua posio como vtimas da violncia da sociedade (o que frequentemente necessrio, devemos lembrar), mas de um modo que incorpora essas experincias como ponto de partida narrativo; e tambm tendem a tratar o trao particular que provocou a vitimizao, seja ele a cor, ou a etnia, ou o gnero, ou qualquer outro, como o seu eixo identitrio, aquilo que as define centralmente, e que, por assim dizer, amarra os fios de seu sentido de valor.
No vcuo espiritual criado pelo liberalismo expressivo, o indivduo no tem fontes morais suficientes para alimentar sua relao com os outros. Em vez de basear sua identidade em relaes positivas, precisa construi-la sobre uma abstrao ideolgica
Temos, ento, duas questes a esclarecer: a questo da vitimidade e a questo do centro identitrio. Penso que ambas so respondidas com uma concepo adequada do ser humano como Homo respondens, o homem que responde.
Se quisermos citar a Declarao Universal dos Direitos Humanos de 1948, l encontraremos a afirmao, no primeiro artigo, que todos os seres humanos nascem livres e iguais, em dignidade e direitos. Alm disso, o fato de cada um ter razo e conscincia torna todos os seres humanos aptos a cumprirem o dever de agir uns para com os outros em esprito de fraternidade; ou seja: os torna sujeitos morais. Assim, ele recebe alguma coisa, e por isso se torna responsvel. Se quisermos descer s razes mais profundas do que se estabeleceu em 1948, encontraremos o personalismo cristo (com ressonncia em doutrinas morais de diferentes religies) e a afirmao da Imago Dei, a imagem divina no ser humano, como fonte ltima de sua dignidade e de seus deveres.
Mas voltemos s implicaes disso: o ser humano j nasce com uma dignidade positiva e o potencial de estabelecer uma identidade integrada com outros seres humanos. Ele recebe possibilidades e deveres desde o nascimento, e precisa oferecer uma resposta. Alm do conjunto de seus traos particulares (sexo, cor, etnia, lngua etc.), essa resposta, dentro de uma relao, o que lhe d sua identidade particular.
O que temos no BBB21 so pessoas expostas diretamente ao veneno do liberalismo expressivo, pondo pra fora sua toxicidade. E o que vemos , precisamente, o estado de natureza vindo tona
Explico: o que define um ser humano particular no primariamente o conjunto de seus traos particulares, mas a relao moral que ele estabelece, com Deus e com os outros, vivida a partir e por meio de seus traos particulares. Essa pessoalidade nica emerge na medida em que, com os recursos e caractersticas de que dispomos, respondemos a Deus, ao prximo e realidade. Chamo essa definio, apoiando-me nos ombros de Henk Geertseman, de Homo respondens.
Penso que, com isso, estamos equipados para entender melhor as questes da vitimidade e do centro identitrio.
O que pensar quando algum diz: eu sou uma mulher negra e, por isso, sofro opresso? claro que essa declarao pode ser perfeitamente verdadeira; mas, no momento em que se tornar o eixo identitrio de algum, se converter numa mentira.
Em primeiro lugar, tenhamos a clareza de compreender que, se a identidade for construda como uma memria de sofrimento coletivo por um trao particular, e fundamentalmente como rejeio contra a ameaa externa, essa identidade conter, em si, um vcio. Nenhuma identidade saudvel pode ser constituda como reao a uma violncia, do contrrio ela ser intrinsecamente constituda pela violncia. Ou seja, ser fundada no trauma.
claro que se trata de um mal provocado externamente; a vitimidade da vtima no a origem do mal, e culpabilizar a vtima est fora de questo. Mais do que isso: sem memria e exposio da verdade, no pode haver reparao e reconciliao.
No entanto, a vitimidade no um trao natural nem um crdito moral, mas uma condio acidental, produzida pelo violador; uma marca deixada na vtima pelo violador. Um resto maligno que a violncia deixou em mim. O que devo fazer com esse resto absolutamente crucial. Mas certo que essa marca no pode mediar minha relao com os outros, pois nesse caso a marca da violncia ser a norma regulativa desses relacionamentos.
Algum pode retrucar, aqui, que nenhum movimento identitrio prope que a vitimidade seja a base da identidade; que se trata, antes, de valorizar o trao desprezado, que foi a fonte da discriminao. Mas todos sabemos que isso falso. A memria do sofrimento coletivo e a sntese das opresses vividas a principal fora agregadora nos coletivos identitrios, e parte constitutiva da construo do mtodo poltico, como evidente na fundadora declarao de 1977 pelo Combahee Riber Collective.
Ao sofrer violncia, sou deformado fisicamente, emocionalmente, s vezes mentalmente, e sempre moralmente. Preciso, sim, de apoio, de reparao e restaurao, do contrrio no haver equidade e justia. Mas a situao no corrigida enquanto no retomo, moralmente, o lugar no qual eu estava antes de sofrer a violncia. preciso que o veneno da violncia seja expelido de mim. E, se minha resposta o que me define, no posso permitir que a violncia e o medo determinem como respondo.
O que define um ser humano particular no primariamente o conjunto de seus traos particulares, mas a relao moral que ele estabelece, com Deus e com os outros, vivida a partir e por meio de seus traos particulares
A vitimidade o vazio deixado pelo fio roubado do tecido da minha existncia. Ela no pode operar como centro organizador da minha narrativa e da minha histria; eu devo ser to contrrio minha vitimidade quanto sou contrrio ao meu violador. Minha resposta ao mundo ainda deve ser baseada no dom que recebi para ser humano, e no no roubo que sofri de outro ser humano. No sou o fio que foi arrancado da tapearia. Eu sou... a tapearia.
E em segundo lugar, devemos ter claro que nossos traos particulares compem crculos identitrios, mas no constituem o eixo do que somos. Vou tomar a mim mesmo como exemplo: mineiro, ndio-com-preto-com-outras-coisas, pai de famlia, telogo, homem-cis, heterossexual, ensino superior completo etc. Qual desses traos me define centralmente? Nenhum deles, e qualquer um deles. Todos esses fios convergem no meu Self, mas a amarrao dada pelos vnculos que estabeleo por aquilo que amo e ao qual eu respondo. Minha identidade particular emerge quando amarro todos esses fios da minha existncia num ponto dentro de mim, e estabeleo um compromisso com o que considero a coisa mais importante do mundo o que Charles Taylor chama de hiperbem.
Se me permitem a analogia jocosa: voc aquilo no qual se pendura.
aqui que a questo da vitimidade se entrelaa com a questo do eixo identitrio. certo que, muitas vezes, a violncia se apoia em um trao secundrio do que sou como pessoa, uma salincia particular, como a cor, o gnero, a nacionalidade, a ligao tnica, o credo ou a orientao sexual e, negando esse trao, ou aproveitando-se de sua vulnerabilidade, o emprega para negar a minha dignidade e os meus direitos. O caso que isso exatamente o que me inclina a afirmar esse trao em resposta ao violador. Isso compreensvel e, at certa medida, apropriado; a legitimidade do que me diferencia precisa ser afirmada.
Minha cor no pode governar totalmente o modo como me relaciono com os outros. Nem meu gnero, nem minha sexualidade, nem o fato de ser pai ou brasileiro. Quando tentamos ar tudo o que somos por esses filtros s, tornamo-nos caricaturas de ns mesmos
Em nenhum momento, no entanto, essa particularidade, por legtima e bela que seja, deve ser alada posio central, como aquilo que me define. Isso ainda seria meramente um vis posto em mim pelo meu violador. No ser negro ou ndio o que me define centralmente, mas a resposta especfica e particular que, como negro ou ndio, dou ao outro relacionando-me moralmente com ele, a partir de meus recursos espirituais positivos. As relaes ticas que estabeleo, em resposta aos outros, so o eixo constitutivo da minha identidade, para o bem ou para o mal. Classe social, etnia ou gnero, por exemplo, compem crculos identitrios concntricos, que contribuem para a minha identidade, mas no constituem pontos de sntese, porque cada uma delas pequena demais para acomodar em si todas as outras.
Minha cor no pode governar totalmente o modo como me relaciono com os outros. Nem meu gnero, nem minha sexualidade, nem o fato de ser pai ou brasileiro. Quando tentamos ar tudo o que somos por esses filtros s, tornamo-nos caricaturas de ns mesmos. por isso que os cristos diro, sempre, que o eixo identitrio deve apontar para Deus; pois s Ele grande o suficiente para incluir tudo o que somos, e organizar todos os nossos crculos identitrios. Amar a nacionalidade acima de tudo, por exemplo, pode me fazer desprezar o estrangeiro; amar minha negritude acima de tudo pode me fazer desprezar quem no tem melanina; mas amar o Criador de todas as coisas pode nos dar a capacidade, se quisermos, de incluir todas as coisas.
No basta falarmos sobre opresso e libertao; precisamos falar sobre a natureza do bem e sobre o destino dos seres humanos
Vamos pular, enfim, da abstrao para o reality: Carol Conk era a artista negra, representante de um grupo particular, com traos particulares; mas, no momento em que adotou certo curso de ao, certo modo de responder, seus traos particulares retrocederam para o background. O mais importante ou a ser a responsabilidade especfica, singular e intransfervel da pessoa Carol Conk pela resposta oferecida ao desafio da situao. Todos os seus traos, sua voz, face, estilo, histria, foram plasmados no gesto de resposta que a a defini-la.
O que se viu, no entanto, foi que a ansiedade, o ressentimento e o orgulho, claramente ligados construo poltica identitria, apequenaram a artista, a psicloga social e outros participantes. Cada um deles tambm um exemplar do Homo respondens, e cada um deles ofereceu a sua resposta; mas o que tornou suas respostas to pobres? Sua carncia de fontes morais. O vcuo moral e espiritual do liberalismo expressivo deixa a pessoa com poucos recursos para responder. O resultado foi a misria.
A despeito das tentativas desesperadas de alguns coletivos e perfis militantes em mdias sociais para dissociar-se do espetculo no Coliseu identitrio, todos temos historietas pessoais e casos anedticos sobre essa misria moral no identitarismo. Enfim, foi um momento de realidade, para mostrar que o discurso emancipatrio no suficiente para formar pessoas e para construir uma sociedade. Como o socilogo Christian Smith colocou muito bem, no basta falarmos sobre opresso e libertao; precisamos falar sobre a natureza do bem e sobre o destino dos seres humanos.
Se quisermos nos livrar da profecia de Thomas Hobbes, precisamos superar o identitarismo e retornar virtude.

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Nota:Artigo originalmente publicado naGazeta do Povo. Reproduzido com permisso.

telogo, mestre em Cincias da Religio e diretor de LAbri Fellowship Brasil. Pastor da Igreja Esperana em Belo Horizonte e presidente da Associao Kuyper para Estudos Transdisciplinares, tambm organizador e autor de Cosmoviso Crist e Transformao e membro fundador da Associao Brasileira Cristos na Cincia (ABC2).
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