A orao de gratido que eu nunca fiz 9481w

Por Phelipe Reis

Senhor, peo que no te aborreas comigo, mas estou tirando minha mscara e o meu figurino religioso que nunca te impressionaram, nem dentro e fora dos palcos, onde enceno meus espetculos estreis , silenciado meu discurso com aparncia de santidade e estou aprendendo a orar por coisas cotidianas e ordinrias, consideradas por alguns at profanas.

Primeiro, agradeo por tua graa aquela que os reformadores chamaram de graa comum e que, segundo eles, a causa das bnos que tu derramas sobre todos os seres humanos, independentemente das crenas de cada um. Obrigado pelo teu favor para com todos, que alm de fazer o Sol se levantar sobre maus e bons e a chuva descer sobre justos e injustos , limita a atuao do pecado no mundo, distribui dons e talentos para homens e mulheres e os torna capazes de produzir beleza.

Eu j tinha me encantado com muitas vozes que esto fora dos palcos da indstria gospel, mas a tua graa comum abriu meus ouvidos para descobrir quanta msica bela h por detrs da feiura da cultura, manchada e deturpada pelo pecado. Para mim, perceber tua graa comum na cultura brasileira um exerccio de sensibilidade, que me ensina a ser mais humano e a ser gente. Por isso te sou grato.

Razes e identidade

Sou grato pelas canes que me fazem saber quem eu sou e de onde eu vim. O samba do amazonense Chico da Silva, alm de alimentar no meu corao a memria de meu pai, me faz reconhecer que o tempo de menino, de rodar pio, estilingue no pescoo e papagaio pra soltar, foi um tempo muito bom e que no volta nunca mais. Cantar com Chico me ensina a amar coisas to puras, to minhas, como as guas que me do alimento e a gostosa farinha no caldo do peixe. A cano Tempo de Trapiche, de David Assayag, me faz no esquecer minhas razes e saber que por onde eu for, levarei no peito o porto de onde parti, com o saudosismo de quem sempre quer voltar um dia.

Sou grato pela honestidade de Gonzaguinha. Suas canes me fizeram itir que homem tambm chora, tambm deseja colo, tambm precisa de carinho, abrao e ternura. Que, no fundo, guerreiros so apenas meninos. Tambm foi ele que me fez entender que soltar a minha voz um lindo jeito de viver o que amar.

Sou grato pelos protestos melanclicos e poticos das msicas de Belchior. Suas letras filosficas expressaram com tanta verdade a minha humanidade to contraditria: a perversa juventude do meu corao, a minha aspirao utpica de amar e mudar as coisas, a minha pressa de viver, e que, portanto, imperativo que deixemos de coisas, cuidemos da vida; seno chega a morte ou coisa parecida e nos arrasta moo sem ter visto a vida.

Sou grato pelo romantismo de Vander Lee, que me lembrou que a vida anda louca e as pessoas andam tristes, e que meus amigos so amigos de ningum. O poeta apaixonado tambm me consolou, disse que eu posso chorar at cansar; eu s preciso de qualquer lugar, onde Deus possa me ouvir.

Poesia, teologia e cotidiano

Sou grato pelo dom de Gladir Cabral em combinar poesia e msica com tanta maestria. O professor me ensina literatura cantando, me inspira a ser mais humano com Gentes, e me faz perceber que um dos momentos cotidianos mais bonitos quando a gente faz um caf gostoso, pe a mesa no jardim e deixa as plantas em paz com a gente, fazendo a vida ganhar maior sentido.

Sou grato pela cano e poesia de Milton Nascimento. O Bituca me ensinou que msica algo to sagrado que no pode estar adornada de outra coisa que no seja a amizade. Alm de me advertir que h que se cuidar do broto, pra que a vida nos d flor e fruto, seus acordes me revelaram o segredo de uma amizade duradoura: amigo coisa para se guardar no lado esquerdo do peito, mesmo que o tempo e a distncia, digam no.

Sou grato por aquela manh de maio de 2008, em Braslia, quando ouvi pela primeira vez o rouco timbre de Zazo, em sua casa, cantando de forma to abrasileirada e potica sua vitria sobre uma doena que quase lhe deixou sem voz. Seis anos depois, ele me traria lembrana que no hora de olhar para trs, mas sim olhar o arco-ris, lembrar a promessa e recomear.

Sou grato pela teologia do trabalho musicada em Amor de ndio, por Beto Guedes: todo amor sagrado / e o fruto do trabalho mais que sagrado, meu amor / A massa que faz o po vale a luz do seu suor / Lembra que o sono sagrado / e alimenta de horizontes / o tempo acordado de viver.

Msica e brasilidade

Sou grato pela ousadia de Joo Alexandre em abrasileirar nossos cnticos congregacionais, sem vergonha de ser brasileiro. O profeta do samba, do frevo e do maracatu, me ensinou que a msica pode ser protesto social, especialmente quando vivemos em um pas de homens com tanto poder e nenhum corao, de gente que compra e que vende a moral da nao. Ele denunciou, mas tambm semeou esperana: se o Brasil olhar pra cima e voltar os olhos pra Deus, existe uma chance de ser novamente feliz!

Sou grato pela carioquice de Gerson Borges. Puxando conversa ele me ensinou que posso ser evanglico sem deixar de ser brasileiro e, junto com Paulo Nazareth, ensinou que preciso aprender a viver o hoje, priorizando na agenda o Esprito Santo, o Filho, o Pai, e o que realmente importa, afinal, eu s tenho o hoje, aqui, agora, o j. E quanto ao amanh, Deus cuidar.

Sou grato pelos irmos L e Mrcio Borges, que alimentaram meus sonhos com Clube da Esquina 2, profetizando que sonhos no envelhecem; grato pela intensidade da vida e do canto de Elis Regina; grato pela ilustrao do cu feita por Marisa Monte, em Vilarejo; grato por aprender a prestar ateno em cores e flores que eu no sei o nome, com Esquadros, de Belchior; grato por poder me apropriar de Velha Infncia, dos Tribalistas, e cantar para ti: Seus olhos meu claro / Me guiam dentro da escurido / Seus ps me abrem o caminho / Eu sigo e nunca me sinto s.

Sou grato a ti, Senhor, pelo dom, talento e sensibilidade que concedeste a esses e tantos outros msicos e compositores brasileiros. Seus timbres e acordes conseguem expressar o que eu no conseguiria comunicar de outra maneira; me fazem querer olhar o mundo e o outro com mais amor; me fazem perceber teu toque em coisas comuns e ordinrias; me fazem amar cada vez mais a ti, por revelarem um Deus criador e criativo, amoroso e gracioso, que aprecia a arte e a beleza.

Phelipe Reis amazonense, missionrio e jornalista. Casado com Luze e pai da Elis.

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Imagem: Photo by Pearse O'Halloran on Unsplash