O papa argentino e os evanglicos brasileiros 215zz

A eleio de um papa latino-americano atiou a curiosidade de jornalistas do mundo inteiro, dos quais alguns poucos vieram bater minha porta (pelo menos, por telefone ou virtualmente). Queriam saber se eu achava que a escolha de um papa latino-americano mudaria substancialmente os destinos da Igreja Catlica e das igrejas evanglicas na regio. Reproduzo logo abaixo minha resposta a essa indagao. Porm houve um jornalista que at perguntava, com seriedade, se a ideia de um papa argentino desagradaria os brasileiros a tal ponto de acelerar ainda mais a sada de catlicos brasileiros para o protestantismo! Pelo menos devemos dar crdito a esse jornalista estrangeiro por saber da rivalidade entre os dois povos sul-americanos; mas, claro, expliquei-lhe que, apesar da avalanche de piadas (algumas muito boas) que resultaram da escolha cardinalcia, as identidades religiosas brasileiras no costumam ser decididas sobre bases to frgeis.

No demorou para que as primeiras pesquisas de opinio pblica revelassem a posio nuanada da populao brasileira. Segundo o Datafolha,¹ a aprovao geral da identidade do novo ocupante do Vaticano veio misturada com insatisfaes generalizadas a respeito de certas posies oficiais da Igreja. Enquanto 74% dos brasileiros consideravam tima ou boa a eleio do cardeal Bergoglio, 83% gostariam que a Igreja aprovasse o uso de preservativos e 77%, a plula anticoncepcional. A maioria tambm queria a ordenao de mulheres (58%) e o fim do celibato obrigatrio para padres (56%).

Ainda estamos (escrevo na primeira quinzena de abril) na fase de lua de mel do papa Francisco. Tudo que ele faz atrai a ateno da mdia internacional, e o simbolismo de suas primeiras aes lhe tm granjeado muita simpatia. Ajuda nisso, claro, o fato de ser o primeiro papa no europeu desde o oitavo sculo e o primeiro do sul global. Mesmo assim, o fato de ser argentino filho de italianos e de falar fluentemente o italiano significa que ele representa uma maneira cautelosa de o Vaticano sair da Europa.

Todo o processo de renncia de Bento XVI, convocao do conclave, eleio do novo papa e acompanhamento de seus primeiros atos colocou em evidncia as imensas vantagens de que o catolicismo dispe. Quanta exposio miditica gratuita, a maior parte favorvel, a Igreja ganhou! Quantas dimenses positivas na sua hierarquia global centralizada, continuidade histrica e cerimnias antiqussimas! (E quanta idiotice nos comentrios de algumas pessoas que diziam que o Vaticano deveria revelar a concluso da eleio pelo Twitter em vez de continuar a faz-lo pela fumaa branca! a prpria antiguidade e idiossincrasia da fumaa que encerra o seu fascnio. Daqui a poucos anos, o Twitter estar esquecido e superado por outra tecnologia... mas a fumaa das eleies papais atravessar muitos sculos ainda.)

As ltimas semanas, ento, deixaram mais em evidncia as vantagens da Igreja Catlica em termos de tradio, visibilidade e simbolismo. A escolha do nome papal, o relato de algumas caractersticas do seu ministrio episcopal em Buenos Aires e a nfase na simplicidade representada pelos seus primeiros gestos pontifcios criaram uma primeira impresso bastante positiva, tanto dentro como fora do mundo catlico. Claro que podemos perguntar at onde ir, de fato, essa simplicidade; de qualquer forma, se mais lderes evanglicos brasileiros demonstrassem semelhante simplicidade de vida, fariam milagres para a imagem pblica evanglica to deteriorada.

Quando a poeira se assentar, no entanto, as desvantagens catlicas voltaro tona. relativamente fcil fazer gestos simblicos iniciais e mudanas no estilo papal. Contudo, muito mais difcil levar a cabo reformas reais, tanto na dimenso istrativa como nas dimenses doutrinria e pastoral ao redor do mundo. Nesse sentido, cabe a indagao se um Francisco (nos moldes daquele de Assis) pode continuar por muito tempo como papa.

Os escndalos que tm afligido a Igreja Catlica cobrem as trs dimenses clssicas: dinheiro, sexo e poder. Porm a corrupo financeira e as lutas internas repercutem menos do que os abusos sexuais. Estes representam uma tragdia, primeiramente para as vtimas, mas tambm para a igreja, que priorizou por muitos anos a preservao institucional em vez da justia do reino de Deus e agora ter de pagar o preo, no s em dinheiro como pelo desprezo de muitas pessoas. Mas representam tambm uma tragdia para o mundo, uma vez que enfraquecem o trabalho em defesa dos direitos humanos, que caracteriza boa parte da igreja desde o Conclio Vaticano II. difcil imaginar que mudanas dramticas aconteam em consequncia dos abusos, a no ser que a crise chegue a comprometer um nmero expressivo de membros da hierarquia. Novamente, foroso reconhecer que a imagem pblica dos evanglicos brasileiros tambm est muito ligada a escndalos nas mesmas dimenses, sobretudo dinheiro e poder.

Outro problema que Francisco poder enfrentar, infelizmente, o fantasma do ado. Nos estudos acadmicos sobre o catolicismo latino-americano, as igrejas brasileira e argentina so sempre usadas como exemplos contrastantes. Enquanto a igreja brasileira (pelo menos, depois de 1968) se ops ditadura e aos abusos dos direitos humanos, a igreja argentina no denunciou a guerra suja e manteve uma forte identificao com o regime militar, a ponto de o ento arcebispo de Buenos Aires afirmar que todos os desaparecidos no haviam sido torturados e assassinados, mas estavam vivendo muito bem no exlio em Paris. Nesse contexto, Jorge Bergoglio era ento chefe dos jesutas no pas. Algumas pessoas o acusam de ter colaborado com o sequestro de dois padres jesutas pelas foras da represso em 1976. Os fatos so contestados, e no est claro se o fantasma desse perodo vai anuviar todo o pontificado de Francisco ou no. De qualquer forma, novamente os evanglicos tero de ser humildes, j que atualmente est em curso na Guatemala o julgamento do primeiro presidente evanglico de pas latino-americano, o ex-general Efran Ros Montt, por crimes contra a humanidade perpetrados durante a sua presidncia nos anos 80. Quem estiver sem pecado, que atire a primeira pedra!

Para terminar, volto pergunta dos jornalistas: a eleio de um papa latino-americano vai mudar a trajetria da Igreja Catlica, a ponto de conseguir diminuir o crescimento das igrejas evanglicas na regio?

O catolicismo na Amrica Latina vive um momento paradoxal em pelo menos dois sentidos. Primeiro, ao mesmo tempo em que tem aumentado a sua importncia no conjunto global do catolicismo (j 42% de todos os catlicos do mundo so latino-americanos), vem perdendo terreno dentro da prpria regio (a porcentagem de catlicos tem diminudo em todos os pases latino-americanos devido ao crescimento evanglico e tambm ao crescimento dos sem-religio). E, em segundo lugar, esse novo centro do catolicismo mundial sofre uma falta crnica de clero em todos os nveis; tanto que, no conclave que votou pelo novo papa, a Amrica Latina foi a regio mais sub-representada. Deveria ter pelo menos o dobro do nmero de cardeais que tem.

A eleio de Francisco dar um impulso momentneo Igreja Catlica na Amrica Latina. bem provvel que, quando o novo papa vier ao Brasil em julho para a Jornada Mundial da Juventude, haja mais gente e mais ateno miditica. Mas improvvel que faa muita diferena a longo prazo, porque o destino do catolicismo na regio depende muito mais do que a Igreja fizer nas bases da sociedade. No no mbito do Vaticano que essas coisas so decididas, mas sim no dia a dia das igrejas nacionais e locais. E, a, o problema principal que a Igreja parece no saber o que fazer para enfrentar esse novo momento na histria religiosa latino-americana, seja por ignorncia da realidade e pela prepotncia de uma antiga religio monopolista como no caso dos hierarcas catlicos que ainda resmungam a respeito das seitas , seja pelas desvantagens como o clericalismo e imobilismo territorial que dificultam a reao por parte daqueles que percebem mais claramente as exigncias da nova situao.

H estudiosos que dizem que a eleio de um papa latino-americano vai atiar ainda mais a sanha proselitista dos evanglicos. Bobagem. H um bom tempo que a imitao vai mais no sentido contrrio, ou seja, as iniciativas evanglicas no so mais reaes, mas aes tomadas por impulso prprio. Se Francisco conseguir inverter novamente essa relao, ter conseguido um feito notvel. Mas provvel que acabe seguindo o exemplo de Bento XVI, que dizia preferir que houvesse poucos catlicos, mas bons. Alis, poucos, mas bons no seria uma m ideia para os evanglicos tambm...


Nota
1. Artigo publicado originalmente na edio 342 da revista Ultimato.
2. www1.folha.uol.com.br/mundo/1251514-brasileiro-aprova-papa-mas-quer-franscisco-mais-liberal-diz-datafolha.shtml