Opinio 3pp3w
16 de dezembro de 2009
- Visualizaes: 4768
comente!
- +A
- -A
-
compartilhar
F e cincia: irms gmeas ou inimigas? (parte 2) 2g2438
Timteo Carriker
A prioridade cosmolgica da f bblica
A f, pelo menos a f bblica, no de maneira alguma, contra a cincia. Pelo contrrio, do ponto de vista teolgico, a f incentiva e exige a cincia no que se refere geralmente a qualquer busca pela verdade e no que se refere especificamente incumbncia humana de classificar, compreender e explicar abstratamente a natureza (Gnesis 2.19-20).
1. A busca da verdade (Sl 25.1-5; Pv 1.7; 2.1-6; 23.23; Dn 2.20-21; Jo 14.6; Rm 12.1-2; Fp 4.8)
Paul Tillich definiu certa vez a religio como qualquer preocupao ltima que algum tenha. Assim, ele foi alm das definies tradicionais que restringia a religio ao campo do mstico, ou do sobrenatural. Mesmo com esta definio ampla de Tillich, no difcil associar a f bblica com uma preocupao com o divino. interessante perceber que as Escrituras fazem uma ntida ligao entre o divino e a verdade. Em Joo 14.6, Jesus alega ser a verdade, no s saber ao seu respeito, mas ser a verdade. E ele no estava inovando. No Antigo Testamento est escrito que o conhecimento (daath) pertence a Deus (1 Sm 2.3). E onde a sabedoria personificada, ela adquire caractersticas divinas. Alis, em Provrbios 1-8 ela ao mesmo tempo personificada e divinizada. Agora, importante esclarecer que a afirmao teolgica Deus a verdade, deve ser entendida inclusivamente, no exclusivamente. No uma negao da cincia. Pelo contrrio, uma afirmao de tudo na cincia e em qualquer paradigma humano que verdadeiro. Quem busca a Deus, busca a verdade. E quem de fato busca a verdade, est no caminho a Deus, mesmo que no intencionalmente, quer seja testa, desta ou ateu. Portanto a f, pela sua busca pela verdade e de modo geral, incentiva e exige a cincia.
2. A incumbncia cientfica
Tambm especificamente a f crist, nas primeiras pginas da sua constituio, a Bblia, comea com uma preocupao cosmolgica: no princpio criou Deus os cus e a terra. E nas suas ltimas pginas lemos da recriao dos mesmos. Os diversos relatos da Bblia sobre o incio do universo (s em Gnesis h duas verses logo no incio e h outras nos salmos, nos profetas e tambm no Novo Testamento) demonstram um interesse nos elementos da natureza em si e por si s que em muito supera o interesse que se encontra nos escritos teolgicos e que em muito coincide com as descries cientficas.
Agora esta ltima frase, a preocupao bblica em muito coincide com as descries cientficas precisa de explicao. Duas observaes quanto linguagem no cientfica da Bblia e o papel de auxlio que cincia presta para uma leitura retrospectiva da Bblia.
Primeiro, tem havido verdadeiras revolues a partir do fim do sculo ado e especialmente nas ltimas duas dcadas sobre mtodos de interpretao da Escrituras. Alguns mtodos so mais controvertidos que os outros. Mas de grosso modo tem havido uma compreenso e apreciao cada vez mais dos meios culturais e historicamente limitados da composio literria dos diversos livros da Bblia. Sem necessariamente abrir a mo da autoridade das Escrituras (alguns abrem, outros no), e baseado na analogia da encarnao do divino no ser humano Jesus, e francamente com o auxlio do desenvolvimento da antropologia cultural e social, os telogos comeam a apreciar e dar espao cada vez mais para a expresso de verdades divinas atravs de foras de expresso culturalmente influenciadas. Talvez para muitos de vocs estou falando o bvio. Mas para outros no to bvio. Por exemplo, se Davi no era o pai de Jesus, por que Jesus chamado constantemente filho de Davi? A resposta simples: a palavra filho (bem) em hebraico se refere descendncia, no apenas filiao imediata. Semelhantemente o arranjo de eventos na vida de Jesus varia entre os Evangelhos simplesmente porque aqueles que relataram os eventos -- Mateus, Marcos, Lucas, e Joo -- no seguiram, por razes bvias, a metodologia da historiografia moderna e ocidental. Escreveram dentro das normas culturais da sua poca e a inspirao divina veio atravs de sua humanidade, no ultraando-a.
Tendo isto em vista, volto a afirmao anterior: a preocupao bblica, dentro da linguagem bblica, em muito coincide com as descries cientficas. Por exemplo, Gnesis fala do surgimento de toda a raa humana, no apenas dum indivduo. A palavra, Ado significa simplesmente ser humano e uma derivao da palavra terra, de onde o ser humano surgiu. No isto a perspectiva cientfica: que a raa humana se constitui dos mesmos elementos da terra?
Em segundo lugar, a perspectiva bblica -- nem sempre a mesma dos telogos -- no se restringe criao da terra e muito menos da raa humana, mas comea numa escala mais abrangente, a criao do universo. E apesar de tudo que alguns cristos bem intencionados dizem, a linguagem hebraica a respeito dos dias da criao no s permite mas exige o conceito de perodos longos, no somente de 24 horas (como j acreditavam os pais da igreja: Irineu, Orgenes, Basil, Agostinho nos primeiros sculos (1-5), e Toms de Aquino no sculo 13, certamente no sob a influncia da modernidade). Dentro do campo semntico da palavra, yom, est o conceito de perodos. S para d um exemplo, pelo menos mil anos depois do relato da criao, o autor de Hebreus no Novo Testamento, disse que podemos entrar no descanso de Deus, a nomenclatura do stimo dia da criao, dia este no qual ainda amos conforme o autor de Hebreus.
Em terceiro lugar, todos os relatos da criao na Bblia pressupem um alto grau de ordem num relacionamento dinmico com o caos (Js 10.12; Jz 5.20; Gn 49.25; x 15.8,11; Nm 16.30; Dt 33.14ss; Jr 31:35-36 e Sl 29 e 8). A construo ordeira da criao sobressai em Provrbios 8.22-36 como a arquitetura da sabedoria personificada. Tambm, a ordem imediatamente evidente no relato de Gnesis 1 da ao inicial de Deus sobre e contra todo o caos (compare Gn 1.2 com Is 45.18). Essa ordem, ou subordinao da criao, continuamente recebe destaque em vrios salmos, especialmente Salmo 18.7-15. Hoje, as teorias do caos e especialmente da complexidade (fenmenos de estudo interdisciplinar) confirmam esta relao necessria para o surgimento de sistemas complexos (talvez a relao entre a entropia e as foras kenticas ilustre este ponto).
Antigamente, os telogos tinham basicamente duas opes para a interpretao do relato cosmolgico de Gnesis 1 e 2. Alguns trataram os relatos de Gnesis 1 e 2 como pura inveno sem nenhuma relao com acontecimentos histricos. Isto parecia-lhes a nica soluo a tantas incompatibilidades com a cincia moderna. Outros estudiosos, no intuito de ser fiel a autoridade das escrituras, foram uma seqncia restritamente cronolgica nos relatos propondo interpretaes cada vez mais fantsticas e inacreditveis.
Hoje, com as lies da antropologia, mais fcil descartar estas duas interpretaes to preocupadas com a cronologia (ou pela sua negao ou pela afirmao) ambas partindo de conceitos contemporneos e ocidentais do tempo e da histria, em contraposio aos conceitos hebraicos antigos. Nos relatos da criao, Israel no estava interessado na natureza fsica da criao em si, como ns hoje em dia procuramos entender pela cincia natural a origem das coisas. Para Israel, o relato da criao era importante medida que explicava seu relacionamento com o plano de Deus, para este mundo todo. Isto , devemos entender os relatos no cronologicamente mas topicamente, o tpico sendo o propsito de Deus para a sua criao, ou mais precisamente, o reino de Deus.
Desta perspectiva, Deus primeiro cria trs grupos bsicos de reinos, ou domnios, durante os primeiros trs dias. Nos prximos trs dias, Deus cria os reis para governarem nos reinos, anteriormente criados. O ltimo rei a ser designado (constituindo a primeira Grande Comisso!) o homem, que recebe o mandato representativo e real como governador- sobre todos os outros reis e reinados. Por representativo, quer dizer que a humanidade foi criada por Deus sua imagem (elem) e semelhana (dmth), isto , segundo a sua espcie (Gn 1.26,11).
O importante no relato, ento, ressaltar o propsito da criao do homem, e no tanto a forma que assumiu. Semelhantemente, o relato se importa mais com o propsito do resto da criao, do que com a forma e com a natureza desta origem em si, sendo estas ltimas, preocupaes da cincia moderna.
Dentro do esquema apresentado a humanidade tem um chamamento representativo para reinar como Deus reina. Por esta razo, o ser humano no somente o servo do Senhor, como tambm representante dele. Assim como Deus faz, o representante deveria fazer, refletindo as caractersticas do Criador. Nisto, a realeza e o domnio de Deus so refletidos no domnio e na istrao apropriados da humanidade sobre a criao. A funo que a imagem de Deus no ser humano tem, portanto, exatamente o que o texto bblico elabora em Gnesis 1.28, ter domnio (rdhh) e sujeitar (kbhash) a terra. Isto o seu status como senhor no mundo. Deus coloca a humanidade no mundo como sinal da sua soberania. E de acordo com Gnesis 2.19-20, esta soberania exercida pela incumbncia (divina) de classificar, compreender, e explicar abstratamente a natureza. A incumbncia e o destino do ser humano esto ligados ao universo e vice versa (Rm 8.19-21).
O Salmo 8 concorda com este conceito de Gnesis 1 de que a humanidade realiza sua comisso como rei do reino terrestre, assim como Deus Rei do reino celeste, e o status do ser humano sendo por um pouco menor do que Deus. Daniel Thambyrajah Niles, telogo e missionrio indiano, ilustra esta relao da seguinte forma:
O homem a nica criatura que Deus fez cujo ser no est em si mesmo, e que por si mesmo no nada. A canicidade do co est no co, mas a humanidade do homem no est no homem. Est na sua relao com Deus. O homem homem porque reflete Deus, e somente quando ele assim o faz. [traduo] (1958:60-61)
O ser humano homo Dei, ou est aqum da sua prpria humanidade. As implicaes desta incumbncia divina do ser humano para a tarefa da cincia so grandes. Repare, por exemplo, que tal incumbncia da essncia da humanidade, e no um derivado da sua salvao. Pois em Gnesis 1 e 2 no se fala da salvao simplesmente porque no havia ainda a queda. A queda aparece somente no captulo 3. Novamente afirmo: a incumbncia divina para governar o mundo natural especialmente atravs da sua classificao nominal das suas diversas partes (sem dvida a cincia campeo na fabricao de palavres!) da essncia de toda a humanidade, no s dos religiosos. Precede a queda. Alis, mesmo depois da queda a incumbncia permanece em p (Gn 9.1-7). Na teologia esta incumbncia comum denominada graa comum ou revelao comum e se distingui da graa especial pela salvao, ou a revelao especial atravs das Escrituras. S que especial no significa que a revelao verdadeira que a revelao comum (por exemplo, por meio da cincia). A qualificao, especial, se refere ao meio da revelao -- as Escrituras -- no a sua qualidade.
O interesse esttico e teleolgico da cincia
Acima usei a analogia de gmeos criados separadamente para descreve a relao entre a cincia e a f. Disse que a f, certamente a f crist, literalmente comea e termina com uma preocupao cosmolgica, uma preocupao que normalmente relegamos a cincia e elaborei um pouco sobre isso. Tambm disse que a cincia est fazendo perguntas cada vez mais teleolgicas e estticas, que se refere finalidade e a beleza da realidade conhecvel, perguntas que geralmente relegamos religio. J que tal afirmao foge da minha competncia profissional, no vou arriscar uma elaborao deste ponto. Vou apenas ilustr-lo atravs de alguns cientistas mundialmente conhecidos e respeitados.
Primeiro, algumas citaes do astrnomo John Barrow (co-autor com Frank Tipler do livro que elabora o princpio cosmolgico antrpico), no seu livro, The Artful Universe (Oxford: Oxford University, 1995):
Incrivelmente, descobrimos que algumas das propriedades do Universo que so essenciais para a existncia de qualquer forma de vida fazem um papel chave na determinao de respostas psicolgicas e religiosas para o Cosmos.
A fascinao cientfica com o fruto da complexidade organizada em todas as suas formas deveria lev-los s artes criativas aonde se encontra m exemplos extraordinrios de preciso estruturada.
Segundo, John Holland, um dos maiores matemticos e simuladores de inteligncia no computador de MIT, no seu livro, Hidden Order: How Adaptation Builds Complexity (Reading, Massachusetts: Addison-Wesley, 1995):
A construo de modelos a arte de selecionar aqueles aspectos dum processo que so relevantes para a pergunta sendo feita esta seleo guiada por gosto, por elegncia e por metfora; uma questo de induo ao invs de deduo. A alta cincia depende desta arte.
Terceiro, o prmio nobel, Steven Weinberg, no seu livro, Dreams of a Final Theory (New York: Pantheon Books, 1992):
O progresso na fsica frequentemente guiado por julgamentos que somente podem ser chamados de estticos.
Acredito que a aceitao geral da relatividade geral se deve em grande parte atrao da teoria em si -- em sntese, sua beleza.
Cientistas e historiadores da cincia j h muito tempo desistiram da perspectiva antiga de Francis Bacon, que as hipteses cientficas deveriam se desenvolver pela observao patente e sem preconceito da natureza.
No somente nosso julgamento esttico um meio para chegar s explanaes cientficas e julgando sua validade -- faz parte daquilo que queremos dizer por uma explanao.
O alvo da fsica no seu nvel mais fundamental no somente descrever o mundo mas explicar por que ele do jeito que .
Concluso
Portanto tanto pelo interesse cientfico -- explicar por que o mundo do jeito que -- quanto pelo interesse da f bblica -- que a grosso modo incentiva e apoia a investigao cientifica, que prefiro ver a f e a cincia como irms gmeas, ou para diminuir o exagero, pelo menos como irmos. Mas ainda no falamos dos mtodos e muito menos das conseqncias dos dois paradigmas que tanto os distinguem. Quem sabe, tanto Rubem Alves quanto eu, no fim, temos razo e devemos ver os agentes da f e da cincia, isto os religiosos e os cientistas como lobos gmeos, embora criados separadamente.
agens bblicas para meditao:
Sl 25.1-5
Pv 1.7; 2.1-6; 23.23
Dn 2.20-21
Jo 14.6
Rm 12.1-2
Fp 4.8
Timteo Carriker telogo, missionrio da Igreja Presbiteriana Independente, capelo dA Rocha Brasil e surfista nas horas vagas. autor de A Viso Missionria na Bblia e coordena diversos sites (e www.tim.carriker.com).
Siga-nos no Twitter!

A f, pelo menos a f bblica, no de maneira alguma, contra a cincia. Pelo contrrio, do ponto de vista teolgico, a f incentiva e exige a cincia no que se refere geralmente a qualquer busca pela verdade e no que se refere especificamente incumbncia humana de classificar, compreender e explicar abstratamente a natureza (Gnesis 2.19-20).
1. A busca da verdade (Sl 25.1-5; Pv 1.7; 2.1-6; 23.23; Dn 2.20-21; Jo 14.6; Rm 12.1-2; Fp 4.8)
Paul Tillich definiu certa vez a religio como qualquer preocupao ltima que algum tenha. Assim, ele foi alm das definies tradicionais que restringia a religio ao campo do mstico, ou do sobrenatural. Mesmo com esta definio ampla de Tillich, no difcil associar a f bblica com uma preocupao com o divino. interessante perceber que as Escrituras fazem uma ntida ligao entre o divino e a verdade. Em Joo 14.6, Jesus alega ser a verdade, no s saber ao seu respeito, mas ser a verdade. E ele no estava inovando. No Antigo Testamento est escrito que o conhecimento (daath) pertence a Deus (1 Sm 2.3). E onde a sabedoria personificada, ela adquire caractersticas divinas. Alis, em Provrbios 1-8 ela ao mesmo tempo personificada e divinizada. Agora, importante esclarecer que a afirmao teolgica Deus a verdade, deve ser entendida inclusivamente, no exclusivamente. No uma negao da cincia. Pelo contrrio, uma afirmao de tudo na cincia e em qualquer paradigma humano que verdadeiro. Quem busca a Deus, busca a verdade. E quem de fato busca a verdade, est no caminho a Deus, mesmo que no intencionalmente, quer seja testa, desta ou ateu. Portanto a f, pela sua busca pela verdade e de modo geral, incentiva e exige a cincia.
2. A incumbncia cientfica
Tambm especificamente a f crist, nas primeiras pginas da sua constituio, a Bblia, comea com uma preocupao cosmolgica: no princpio criou Deus os cus e a terra. E nas suas ltimas pginas lemos da recriao dos mesmos. Os diversos relatos da Bblia sobre o incio do universo (s em Gnesis h duas verses logo no incio e h outras nos salmos, nos profetas e tambm no Novo Testamento) demonstram um interesse nos elementos da natureza em si e por si s que em muito supera o interesse que se encontra nos escritos teolgicos e que em muito coincide com as descries cientficas.
Agora esta ltima frase, a preocupao bblica em muito coincide com as descries cientficas precisa de explicao. Duas observaes quanto linguagem no cientfica da Bblia e o papel de auxlio que cincia presta para uma leitura retrospectiva da Bblia.
Primeiro, tem havido verdadeiras revolues a partir do fim do sculo ado e especialmente nas ltimas duas dcadas sobre mtodos de interpretao da Escrituras. Alguns mtodos so mais controvertidos que os outros. Mas de grosso modo tem havido uma compreenso e apreciao cada vez mais dos meios culturais e historicamente limitados da composio literria dos diversos livros da Bblia. Sem necessariamente abrir a mo da autoridade das Escrituras (alguns abrem, outros no), e baseado na analogia da encarnao do divino no ser humano Jesus, e francamente com o auxlio do desenvolvimento da antropologia cultural e social, os telogos comeam a apreciar e dar espao cada vez mais para a expresso de verdades divinas atravs de foras de expresso culturalmente influenciadas. Talvez para muitos de vocs estou falando o bvio. Mas para outros no to bvio. Por exemplo, se Davi no era o pai de Jesus, por que Jesus chamado constantemente filho de Davi? A resposta simples: a palavra filho (bem) em hebraico se refere descendncia, no apenas filiao imediata. Semelhantemente o arranjo de eventos na vida de Jesus varia entre os Evangelhos simplesmente porque aqueles que relataram os eventos -- Mateus, Marcos, Lucas, e Joo -- no seguiram, por razes bvias, a metodologia da historiografia moderna e ocidental. Escreveram dentro das normas culturais da sua poca e a inspirao divina veio atravs de sua humanidade, no ultraando-a.
Tendo isto em vista, volto a afirmao anterior: a preocupao bblica, dentro da linguagem bblica, em muito coincide com as descries cientficas. Por exemplo, Gnesis fala do surgimento de toda a raa humana, no apenas dum indivduo. A palavra, Ado significa simplesmente ser humano e uma derivao da palavra terra, de onde o ser humano surgiu. No isto a perspectiva cientfica: que a raa humana se constitui dos mesmos elementos da terra?
Em segundo lugar, a perspectiva bblica -- nem sempre a mesma dos telogos -- no se restringe criao da terra e muito menos da raa humana, mas comea numa escala mais abrangente, a criao do universo. E apesar de tudo que alguns cristos bem intencionados dizem, a linguagem hebraica a respeito dos dias da criao no s permite mas exige o conceito de perodos longos, no somente de 24 horas (como j acreditavam os pais da igreja: Irineu, Orgenes, Basil, Agostinho nos primeiros sculos (1-5), e Toms de Aquino no sculo 13, certamente no sob a influncia da modernidade). Dentro do campo semntico da palavra, yom, est o conceito de perodos. S para d um exemplo, pelo menos mil anos depois do relato da criao, o autor de Hebreus no Novo Testamento, disse que podemos entrar no descanso de Deus, a nomenclatura do stimo dia da criao, dia este no qual ainda amos conforme o autor de Hebreus.
Em terceiro lugar, todos os relatos da criao na Bblia pressupem um alto grau de ordem num relacionamento dinmico com o caos (Js 10.12; Jz 5.20; Gn 49.25; x 15.8,11; Nm 16.30; Dt 33.14ss; Jr 31:35-36 e Sl 29 e 8). A construo ordeira da criao sobressai em Provrbios 8.22-36 como a arquitetura da sabedoria personificada. Tambm, a ordem imediatamente evidente no relato de Gnesis 1 da ao inicial de Deus sobre e contra todo o caos (compare Gn 1.2 com Is 45.18). Essa ordem, ou subordinao da criao, continuamente recebe destaque em vrios salmos, especialmente Salmo 18.7-15. Hoje, as teorias do caos e especialmente da complexidade (fenmenos de estudo interdisciplinar) confirmam esta relao necessria para o surgimento de sistemas complexos (talvez a relao entre a entropia e as foras kenticas ilustre este ponto).
Antigamente, os telogos tinham basicamente duas opes para a interpretao do relato cosmolgico de Gnesis 1 e 2. Alguns trataram os relatos de Gnesis 1 e 2 como pura inveno sem nenhuma relao com acontecimentos histricos. Isto parecia-lhes a nica soluo a tantas incompatibilidades com a cincia moderna. Outros estudiosos, no intuito de ser fiel a autoridade das escrituras, foram uma seqncia restritamente cronolgica nos relatos propondo interpretaes cada vez mais fantsticas e inacreditveis.
Hoje, com as lies da antropologia, mais fcil descartar estas duas interpretaes to preocupadas com a cronologia (ou pela sua negao ou pela afirmao) ambas partindo de conceitos contemporneos e ocidentais do tempo e da histria, em contraposio aos conceitos hebraicos antigos. Nos relatos da criao, Israel no estava interessado na natureza fsica da criao em si, como ns hoje em dia procuramos entender pela cincia natural a origem das coisas. Para Israel, o relato da criao era importante medida que explicava seu relacionamento com o plano de Deus, para este mundo todo. Isto , devemos entender os relatos no cronologicamente mas topicamente, o tpico sendo o propsito de Deus para a sua criao, ou mais precisamente, o reino de Deus.
Desta perspectiva, Deus primeiro cria trs grupos bsicos de reinos, ou domnios, durante os primeiros trs dias. Nos prximos trs dias, Deus cria os reis para governarem nos reinos, anteriormente criados. O ltimo rei a ser designado (constituindo a primeira Grande Comisso!) o homem, que recebe o mandato representativo e real como governador- sobre todos os outros reis e reinados. Por representativo, quer dizer que a humanidade foi criada por Deus sua imagem (elem) e semelhana (dmth), isto , segundo a sua espcie (Gn 1.26,11).
O importante no relato, ento, ressaltar o propsito da criao do homem, e no tanto a forma que assumiu. Semelhantemente, o relato se importa mais com o propsito do resto da criao, do que com a forma e com a natureza desta origem em si, sendo estas ltimas, preocupaes da cincia moderna.
Dentro do esquema apresentado a humanidade tem um chamamento representativo para reinar como Deus reina. Por esta razo, o ser humano no somente o servo do Senhor, como tambm representante dele. Assim como Deus faz, o representante deveria fazer, refletindo as caractersticas do Criador. Nisto, a realeza e o domnio de Deus so refletidos no domnio e na istrao apropriados da humanidade sobre a criao. A funo que a imagem de Deus no ser humano tem, portanto, exatamente o que o texto bblico elabora em Gnesis 1.28, ter domnio (rdhh) e sujeitar (kbhash) a terra. Isto o seu status como senhor no mundo. Deus coloca a humanidade no mundo como sinal da sua soberania. E de acordo com Gnesis 2.19-20, esta soberania exercida pela incumbncia (divina) de classificar, compreender, e explicar abstratamente a natureza. A incumbncia e o destino do ser humano esto ligados ao universo e vice versa (Rm 8.19-21).
O Salmo 8 concorda com este conceito de Gnesis 1 de que a humanidade realiza sua comisso como rei do reino terrestre, assim como Deus Rei do reino celeste, e o status do ser humano sendo por um pouco menor do que Deus. Daniel Thambyrajah Niles, telogo e missionrio indiano, ilustra esta relao da seguinte forma:
O homem a nica criatura que Deus fez cujo ser no est em si mesmo, e que por si mesmo no nada. A canicidade do co est no co, mas a humanidade do homem no est no homem. Est na sua relao com Deus. O homem homem porque reflete Deus, e somente quando ele assim o faz. [traduo] (1958:60-61)
O ser humano homo Dei, ou est aqum da sua prpria humanidade. As implicaes desta incumbncia divina do ser humano para a tarefa da cincia so grandes. Repare, por exemplo, que tal incumbncia da essncia da humanidade, e no um derivado da sua salvao. Pois em Gnesis 1 e 2 no se fala da salvao simplesmente porque no havia ainda a queda. A queda aparece somente no captulo 3. Novamente afirmo: a incumbncia divina para governar o mundo natural especialmente atravs da sua classificao nominal das suas diversas partes (sem dvida a cincia campeo na fabricao de palavres!) da essncia de toda a humanidade, no s dos religiosos. Precede a queda. Alis, mesmo depois da queda a incumbncia permanece em p (Gn 9.1-7). Na teologia esta incumbncia comum denominada graa comum ou revelao comum e se distingui da graa especial pela salvao, ou a revelao especial atravs das Escrituras. S que especial no significa que a revelao verdadeira que a revelao comum (por exemplo, por meio da cincia). A qualificao, especial, se refere ao meio da revelao -- as Escrituras -- no a sua qualidade.
O interesse esttico e teleolgico da cincia
Acima usei a analogia de gmeos criados separadamente para descreve a relao entre a cincia e a f. Disse que a f, certamente a f crist, literalmente comea e termina com uma preocupao cosmolgica, uma preocupao que normalmente relegamos a cincia e elaborei um pouco sobre isso. Tambm disse que a cincia est fazendo perguntas cada vez mais teleolgicas e estticas, que se refere finalidade e a beleza da realidade conhecvel, perguntas que geralmente relegamos religio. J que tal afirmao foge da minha competncia profissional, no vou arriscar uma elaborao deste ponto. Vou apenas ilustr-lo atravs de alguns cientistas mundialmente conhecidos e respeitados.
Primeiro, algumas citaes do astrnomo John Barrow (co-autor com Frank Tipler do livro que elabora o princpio cosmolgico antrpico), no seu livro, The Artful Universe (Oxford: Oxford University, 1995):
Incrivelmente, descobrimos que algumas das propriedades do Universo que so essenciais para a existncia de qualquer forma de vida fazem um papel chave na determinao de respostas psicolgicas e religiosas para o Cosmos.
A fascinao cientfica com o fruto da complexidade organizada em todas as suas formas deveria lev-los s artes criativas aonde se encontra m exemplos extraordinrios de preciso estruturada.
Segundo, John Holland, um dos maiores matemticos e simuladores de inteligncia no computador de MIT, no seu livro, Hidden Order: How Adaptation Builds Complexity (Reading, Massachusetts: Addison-Wesley, 1995):
A construo de modelos a arte de selecionar aqueles aspectos dum processo que so relevantes para a pergunta sendo feita esta seleo guiada por gosto, por elegncia e por metfora; uma questo de induo ao invs de deduo. A alta cincia depende desta arte.
Terceiro, o prmio nobel, Steven Weinberg, no seu livro, Dreams of a Final Theory (New York: Pantheon Books, 1992):
O progresso na fsica frequentemente guiado por julgamentos que somente podem ser chamados de estticos.
Acredito que a aceitao geral da relatividade geral se deve em grande parte atrao da teoria em si -- em sntese, sua beleza.
Cientistas e historiadores da cincia j h muito tempo desistiram da perspectiva antiga de Francis Bacon, que as hipteses cientficas deveriam se desenvolver pela observao patente e sem preconceito da natureza.
No somente nosso julgamento esttico um meio para chegar s explanaes cientficas e julgando sua validade -- faz parte daquilo que queremos dizer por uma explanao.
O alvo da fsica no seu nvel mais fundamental no somente descrever o mundo mas explicar por que ele do jeito que .
Concluso
Portanto tanto pelo interesse cientfico -- explicar por que o mundo do jeito que -- quanto pelo interesse da f bblica -- que a grosso modo incentiva e apoia a investigao cientifica, que prefiro ver a f e a cincia como irms gmeas, ou para diminuir o exagero, pelo menos como irmos. Mas ainda no falamos dos mtodos e muito menos das conseqncias dos dois paradigmas que tanto os distinguem. Quem sabe, tanto Rubem Alves quanto eu, no fim, temos razo e devemos ver os agentes da f e da cincia, isto os religiosos e os cientistas como lobos gmeos, embora criados separadamente.
agens bblicas para meditao:
Sl 25.1-5
Pv 1.7; 2.1-6; 23.23
Dn 2.20-21
Jo 14.6
Rm 12.1-2
Fp 4.8
Timteo Carriker telogo, missionrio da Igreja Presbiteriana Independente, capelo dA Rocha Brasil e surfista nas horas vagas. autor de A Viso Missionria na Bblia e coordena diversos sites (e www.tim.carriker.com).
Siga-nos no Twitter!
16 de dezembro de 2009
- Visualizaes: 4768
comente!
- +A
- -A
-
compartilhar
QUE BOM QUE VOC CHEGOU AT AQUI. 223i1k
Ultimato quer falar com voc.
A cada dia, mais de dez mil usurios navegam pelo Portal Ultimato. Leem e compartilham gratuitamente dezenas de blogs e hotsites, alm do acervo digital da revista Ultimato, centenas de estudos bblicos, devocionais dirias de autores como John Stott, Eugene Peterson, C. S. Lewis, entre outros, alm de artigos, notcias e servios que so atualizados diariamente nas diferentes plataformas e redes sociais.
PARA CONTINUAR, precisamos do seu apoio. Compartilhe conosco um cafezinho.

Leia mais em Opinio 2l1v6s

Opinio do leitor 1t5dh
Para comentar necessrio estar logado no site. Clique aqui para fazer o ou o seu cadastro.
Ainda no h comentrios sobre este texto. Seja o primeiro a comentar!
Escreva um artigo em resposta
Para escrever uma resposta necessrio estar cadastrado no site. Clique aqui para fazer o ou seu cadastro.
Ainda no h artigos publicados na seo "Palavra do leitor" em resposta a este texto.
Assuntos em ltimas 6ik57
- 500AnosReforma
- Aconteceu Comigo
- Aconteceu h...
- Agenda50anos
- Arte e Cultura
- Biografia e Histria
- Casamento e Famlia
- Cincia
- Devocionrio
- Espiritualidade
- Estudo Bblico
- Evangelizao e Misses
- tica e Comportamento
- Igreja e Liderana
- Igreja em ao
- Institucional
- Juventude
- Legado e Louvor
- Meio Ambiente
- Poltica e Sociedade
- Reportagem
- Resenha
- Sessenta +
- Srie Cincia e F Crist
- Teologia e Doutrina
- Testemunho
- Vida Crist
Revista Ultimato 5z423b
+ lidos 1s1q68
- Bonhoeffer um comeo no fim
- Esperana utilizvel
- O que a Bblia tem a dizer sobre os ODS e a COP30?
- ABU Editora 50 Anos: F que Dialoga
- Lamento. Rinaldo de Mattos (1934-2025)
- Domingo da Igreja Perseguida (DIP) 2025 acontece dia 15 de junho
- Viver e Ser programa da Sociedade Bblica do Brasil em favor de pessoas idosas
- O que esperar do papado de Leo XIV? Observaes de um protestante
- A relao apaixonada dos evanglicos com Israel
- Dilogos de Esperana vai ouvir adolescentes