Opinio 3pp3w
19 de fevereiro de 2020
- Visualizaes: 6562
comente!
- +A
- -A
-
compartilhar
Estado laico e evanglicos na poltica brasileira: controvrsias atuais em perspectiva 6e3v5e
Por Paul Freston

Protestantismo e Estado laico: alguns momentos histricos
A Reforma Protestante do sculo 16 nas suas formas luterana, calvinista e anglicana se manteve dentro do modelo da cristandade que predominava na Europa. Mas introduziu uma tenso. Sobretudo nas formas mais livres, o protestantismo se v como um retorno igreja crist primitiva. Porm, esta era uma seita discriminada que logo se tornou uma comunidade voluntria transcultural. Em vez de impor uma lei religiosa, no apenas falava de uma lei escrita no corao e de um reino que no deste mundo, o que permitiu que os crentes pertencessem a qualquer reino terrestre (dai a Csar o que de Csar), mas tambm relativizava todos os reinos. Na ausncia de uma receita poltica definida, foi possvel adotar uma variedade de posturas perante o Estado (indiferena escatolgica, ou crtica proftica, ou legitimao conformista). Como disse um dos fundadores da sociologia, Alexis de Tocqueville, faltava ao pensamento cristo primitivo a ideia de cidadania moral, o que gera um vazio poltico perigoso, sobretudo em tempos democrticos, que exigem cidados ativos, e no sditos ivos. Desde os tempos de Tocqueville (meados do sculo 19), esse vazio foi minimizado no catolicismo por meio do magistrio social, mas continuou no protestantismo evanglico (sobretudo pentecostal) com a sua nfase numa volta primitivista s origens. J que as origens do cristianismo eram distantes das do Estado e da vida poltica, a tentao mais frequente do evangelicalismo no a teocracia, e sim o apoliticismo.
Mesmo assim, em um sentido importante, as formas mais primitivistas do protestantismo tiveram um grande impacto no mundo moderno. No incio do sculo 17, os primeiros batistas de lngua inglesa foram os pioneiros de uma nova perspectiva nas relaes entre religio e Estado. Assim como os anabatistas do sculo anterior, insistiram na separao entre igreja e Estado; mas, ao contrrio dos anabatistas, no condenavam a participao crist nos afazeres do Estado e na vida pblica. Assim, abriram o caminho para uma nova sntese: a separao entre religio e Estado, mas com a possibilidade da fuso entre religio e vida pblica.
Parte central dessa nova sntese era a defesa do princpio da liberdade religiosa. Os primeiros defensores desse princpio, to caracterstico do nosso mundo, no eram descrentes cticos, mas cristos convictos. Para eles, o conceito de tolerncia religiosa e de um Estado no confessional surgia das suas convices religiosas. O pluralismo era defendido em bases teolgicas. Como disse um batista ingls em 1614, Que sejam hereges, turcos, judeus ou o que for, no compete ao governo puni-los. Esse princpio foi implementado na colnia de Rhode Island, cujo fundador escreveu: a vontade de Deus em todas as naes que todos os homens tenham a liberdade de conscincia e de adorao, sejam eles pagos, turcos ou anticristos [...] o Estado no deve ser cristo, mas meramente natural, humano e civil.
Podemos resumir a viso desses protestantes radicais do sculo 17 da seguinte forma: a viso crist do Estado que o Estado no deve ser cristo. Eram tolerantes nos contextos poltico e civil, mesmo que alguns deles fossem bastante intolerantes nas polmicas religiosas e na vida intraeclesistica.
No entanto, estamos falando de apenas um setor dentro do protestantismo da poca. Em outros setores, prevaleciam duas outras vises: a ideia de nao crist, na qual o Estado deveria promover a verdadeira religio e a verdadeira moral; ou, ento, a ideia da rejeio apoltica do Estado. No protestantismo brasileiro de hoje, essas trs vises, bem articuladas ou no, continuam lutando entre si.
Perspectivas comparadas sobre laicidade e a relao entre religio e poltica
A teoria da secularizao (quanto mais moderno, mais secular) tem sido fortemente questionada desde os anos 1980. A teoria via a Europa como normativa, e os Estados Unidos eram considerados uma exceo que no invalidava a regra. Mas, nas ltimas dcadas, muitos estudiosos abandonaram (pelo menos parcialmente) a teoria da secularizao e adotaram a ideia de modernidades mltiplas (h vrias maneiras de ser moderno, inclusive maneiras religiosas). A Europa j no mais vista como normativa, e sim como excepcional (em termos globais) na secularidade de sua populao e de sua vida pblica. A religio continua (ou volta a estar) em evidncia na vida poltica de vrias regies do mundo, mais recentemente na primavera rabe.
Na realidade, a relao da religio com a vida pblica ao redor do mundo extremamente variada, como tambm o a relao entre religio e Estado. Tem havido uma sofisticao crescente nas anlises da relao religioEstado. Vrias tipologias foram propostas. Utilizo aqui uma do cientista poltico turco Ahmet Kuru, que prope um continuum:
- Estados religiosos (ex.: Ir).
- Estados com uma religio estabelecida (ex.: Inglaterra) ou vrias religies estabelecidas ou oficializadas (ex.: Indonsia).
- Estados com a laicidade iva ou plural, ou seja, a neutralidade estatal e permitindo a visibilidade pblica da religio (ex.: Estados Unidos).
- Estados com a laicidade agressiva ou de combate, ou seja, que exclui a religio da esfera pblica (ex.: Frana e Turquia).
- Estados antirreligiosos (ex.: Coreia do Norte).
Uma coisa que percebemos dessa tipologia que a frase o Estado laico significa muito pouco, pois as ltimas trs opes (muito diferentes entre si) poderiam caber nessa frase. Frequentemente, h um uso ideolgico desse lema para deslegitimar uma proposta adversria.
No h modelo ideal de relao religioEstado. O que de fato existe, sempre, uma evoluo a partir de realidades locais. A fora de tradies locais no desaparece com mudanas meramente legais. No h resposta definitiva pergunta sobre se a Frana, por exemplo, tem razo em proibir o uso do vu em determinados ambientes, pois o vu pode significar coisas diferentes em pases diferentes.
Alm disso, os estudiosos tm chamado a ateno para a diferena entre a relao IgrejaEstado e a relao religiopoltica. H muitos pases que no tm Igreja estabelecida, mas tm uma vida poltica muito imbuda pelos impulsos e valores religiosos. No h nada de antimoderno muito menos de antidemocrtico nisso.
O campo religioso brasileiro e a poltica
O Brasil vem ando por um processo de pluralizao religiosa de dentro (no causada pela imigrao) e de baixo para cima (a partir da sociedade civil, e sobretudo das camadas inferiores). Ou seja, a antiga cristandade catlica estabelecida na era colonial vem sendo transformada pelo voluntarismo evanglico, sem ar primeiro por uma reforma nacional protestante, como aconteceu no norte da Europa. O novo pluralismo religioso no Brasil resultado da converso, no da imigrao e secularizao. O antigo modelo sincrtico-hierrquico do campo religioso vem cedendo lugar a um modelo pluralista competitivo.
Em qu o Brasil singular, em termos globais? No em ter uma forte presena da religio na poltica, pois isso acontece em muitos pases. No no crescimento evanglico. Nem no envolvimento evanglico na poltica. Mas o Brasil singular, sim, no corporativismo eleitoral evanglico bem-sucedido. Ou seja, a prtica de vrias denominaes evanglicas (basicamente de corte pentecostal) de apresentarem candidatos oficiais em eleies e em convencer boa parte dos seus membros a votarem nesses candidatos, elegendo-os deputados federais, deputados estaduais e vereadores.
A que se deve essa singularidade brasileira? O que torna possvel esse corporativismo poltico pentecostal? A juno de vrios fatores: o sistema eleitoral (de representao proporcional com listas abertas); o sistema partidrio (fragmentado, voltil e pouco ideolgico); as caractersticas sectrias (em sentido sociolgico) das grandes denominaes pentecostais e seu sucesso numrico nas bases da sociedade; o relativo isolamento dessas denominaes das tradies e do pensamento do mundo cristo mais amplo; e a organizao da mdia no Brasil, que possibilita uma presena macia das igrejas por meio da compra de horrios e aquisio de canais de televiso.
sobretudo o corporativismo das candidaturas oficiais que explica o hiato em anlises acadmicas, entre uma avaliao bastante positiva da presena evanglica no mbito micro (na sociedade civil, sobretudo nas esferas mais desvalidas da sociedade), e uma avaliao negativa no mbito macro (na poltica formal). O modelo de candidatos oficiais est ligado, de forma totalmente desproporcional, aos casos de envolvimento de polticos evanglicos em escndalos polticos.
At onde vai o corporativismo? Ele tem sucesso relativamente grande em eleies proporcionais, elegendo parlamentares em todos os nveis. Mas muito menos eficaz em eleies majoritrias, pois: a) no consegue eleger seus prprios candidatos, porque a lgica de uma campanha majoritria outra; e b) s vezes promete votos a um candidato de fora da igreja (a prefeito, governador, presidente), mas nunca consegue uma taxa to alta de obedincia dos seus fiis.
Nesse contexto, pertinente olhar alguns dados sobre as atitudes polticas dos fiis pentecostais comuns. Em 2006, foi feita uma pesquisa sobre pentecostais de dez pases, inclusive o Brasil. Os pentecostais brasileiros afirmam, tanto quanto a populao brasileira em geral, o valor dos processos democrticos. Quando perguntados se, para resolver os problemas do pas, seria melhor ter um governo mais participativo ou um lder forte, os pentecostais preferem por larga margem um governo mais participativo, ainda mais do que a populao brasileira em geral. Somente 25% dos pentecostais queriam a soluo do governante forte, comparados com 29% da populao em geral.
Quanto importncia de haver liberdade religiosa, inclusive para as outras religies, os pentecostais (94% favorveis) acompanham a tendncia geral da populao (95%). E perguntados se deve haver separao entre Igreja e Estado, ou se o pas deveria ser oficialmente um pas cristo, muito mais pentecostais so a favor da separao (50%) do que da ideia de um pas cristo (32%).
O crescimento pentecostal estaria favorecendo a ideologia do governo mnimo e do neoliberalismo? Os dados do Pew Research Center sugerem que no. Perguntados se o governo deve garantir alimento e abrigo a todos os cidados, os pentecostais (95%) so ainda mais afirmativos que os brasileiros em geral (93%).
Acontece algo semelhante com a ideia de que os pentecostais estariam criando ao redor do mundo um ambiente favorvel aos interesses imperiais norte-americanos. Perguntados em 2006 se eram a favor da guerra ao terror liderada pelos Estados Unidos, os pentecostais brasileiros responderam menos positivamente do que a populao brasileira em geral.
O Pew Research Center fez duas perguntas sobre o aborto. Primeiro, sobre a dimenso moral: se o aborto , em alguma circunstncia, moralmente justificvel 91% dos pentecostais brasileiros disseram que no. Mas sobre a dimenso legislativa, a resposta foi diferente: somente 56% disseram que o governo deveria interferir na capacidade de uma mulher conseguir um aborto. Ou seja, 91% consideram o aborto moralmente inaceitvel, mas somente 56% acham que a lei deve proibi-lo.
Por fim, pertinente considerar a possvel longevidade do estilo corporativista pentecostal de fazer poltica. Comeou em 1986, com a eleio para a Constituinte, e tudo indica que ainda tem muito flego. Mas no vai durar para sempre. Por uma srie de razes, a fase de crescimento rpido das igrejas evanglicas (e sobretudo das pentecostais) no deve durar alm de mais duas ou trs dcadas. Depois, a porcentagem evanglica da populao dever se estabilizar. Com isso, quanto s caractersticas sociolgicas das igrejas evanglicas, tudo mudar. E outras maneiras de relacionar-se com a poltica aro a predominar.
Portanto, o tipo de poltica pentecostal que atualmente predomina no parte essencial do pentecostalismo nem, muito menos, da religio evanglica mais ampla. Um dia ser superado, talvez graas mais a mudanas sociolgicas do que a um processo consciente de aprendizado. Mas bom lembrarmos, ainda hoje, das limitaes desse modelo corporativista e da fragilidade de suas bases internas. No entanto, por alguns anos ainda, o corporativismo marcar fortemente a presena evanglica na vida pblica.
Concluses
- O protestantismo evanglico, historicamente, teve um papel de pioneirismo na evoluo do conceito do Estado laico.
- Esse conceito, no entanto, sempre conviveu, dentro do protestantismo, com outras posies.
- O laicismo existe no mundo contemporneo sob vrias formas. Algumas se referem apenas relao entre religio e Estado, mas outras se estendem relao entre religio e vida pblica em geral.
- O conjunto da presena evanglica na poltica brasileira claramente prope um vnculo entre religio e vida pblica. Isso contraria o laicismo agressivo, mas condizente com o laicismo plural e com a ideia de modernidades mltiplas.
- O modelo corporativista pentecostal predominou, at agora, nas bancadas parlamentares evanglicas, mas sua fora dever diminuir nas prximas dcadas e muito contestado dentro do mundo evanglico.
- Enquanto isso, a questo-chave se o modelo corporativista funciona de forma a ferir o laicismo plural. A mera invocao do slogan o Estado laico no resolve essa questo. Somente por meio de um exame dos pronunciamentos e aes dos atores em cada caso que se pode determinar se, de fato, a atuao afronta a natureza laica plural do Estado brasileiro.
Nota
Artigo publicado originalmente em duas partes nas edies de novembro/dezembro 2014 e janeiro/fevereiro 2015 da revista Ultimato.
Autor de "Religio e Poltica, sim; Igreja e Estado, no" e "Nem Monge, Nem Executivo - Jesus: um modelo de espiritualidade invertida", ambos pela Editora Ultimato; e "Neemias, Um Profissional a Servio do Reino" e "Quem Perde, Ganha", pela ABU Editora, Paul Freston, ingls naturalizado brasileiro, doutor em sociologia pela UNICAMP. professor do programa de ps-graduao em cincias sociais na Universidade Federal de So Carlos e, desde 2003, professor catedrtico de sociologia no Calvin College, nos Estados Unidos. colunista da revista Ultimato.
- Textos publicados: 17 [ver]
19 de fevereiro de 2020
- Visualizaes: 6562
comente!
- +A
- -A
-
compartilhar
QUE BOM QUE VOC CHEGOU AT AQUI. 223i1k
Ultimato quer falar com voc.
A cada dia, mais de dez mil usurios navegam pelo Portal Ultimato. Leem e compartilham gratuitamente dezenas de blogs e hotsites, alm do acervo digital da revista Ultimato, centenas de estudos bblicos, devocionais dirias de autores como John Stott, Eugene Peterson, C. S. Lewis, entre outros, alm de artigos, notcias e servios que so atualizados diariamente nas diferentes plataformas e redes sociais.
PARA CONTINUAR, precisamos do seu apoio. Compartilhe conosco um cafezinho.

Leia mais em Opinio 2l1v6s

Opinio do leitor 1t5dh
Para comentar necessrio estar logado no site. Clique aqui para fazer o ou o seu cadastro.
Ainda no h comentrios sobre este texto. Seja o primeiro a comentar!
Escreva um artigo em resposta
Para escrever uma resposta necessrio estar cadastrado no site. Clique aqui para fazer o ou seu cadastro.
Ainda no h artigos publicados na seo "Palavra do leitor" em resposta a este texto.
Assuntos em ltimas 6ik57
- 500AnosReforma
- Aconteceu Comigo
- Aconteceu h...
- Agenda50anos
- Arte e Cultura
- Biografia e Histria
- Casamento e Famlia
- Cincia
- Devocionrio
- Espiritualidade
- Estudo Bblico
- Evangelizao e Misses
- tica e Comportamento
- Igreja e Liderana
- Igreja em ao
- Institucional
- Juventude
- Legado e Louvor
- Meio Ambiente
- Poltica e Sociedade
- Reportagem
- Resenha
- Sessenta +
- Srie Cincia e F Crist
- Teologia e Doutrina
- Testemunho
- Vida Crist
Revista Ultimato 5z423b
+ lidos 1s1q68
- Paul Tournier e a Bblia
- Gerao Z lidera reavivamento da igreja no Reino Unido
- Bonhoeffer um comeo no fim
- O que a Bblia tem a dizer sobre os ODS e a COP30?
- ABU Editora 50 Anos: F que Dialoga
- Esperana utilizvel
- O que esperar do papado de Leo XIV? Observaes de um protestante
- Lamento. Rinaldo de Mattos (1934-2025)
- Viver e Ser programa da Sociedade Bblica do Brasil em favor de pessoas idosas
- Domingo da Igreja Perseguida (DIP) 2025 acontece dia 15 de junho