A Promessa: o filme e o genocdio 262l3

A Promessa The Promisse, 2017 do diretor irlands Terry George (do muito bom Hotel Ruanda, de 2005) estreou agora em maio no Brasil. A premissa bsica do filme simples: contar uma histria menor dentro de uma histria maior. Exemplo desta frmula o mega-sucesso Titanic, do fim dos anos de 1990. No caso, a histria menor a histria de um tringulo amoroso, e a maior, uma das mais dramticas, e menos comentadas do sculo ado: o genocdio armnio por parte do governo turco, ocorrido h exatos cem anos, antes e por ocasio da Primeira Guerra Mundial. Calcula-se que entre 1915 e 1923 cerca de um milho e meio de armnios foram massacrados. O fato de o filme tocar neste ponto delicado da histria mundial provocou uma polmica muito candente, porque o governo turco at hoje no reconhece que a perseguio e extermnio sistemticos perpetrados pelo ento Imprio Otomano populao armnia em seu territrio tenha sido um genocdio, isto , uma tentativa explcita de extermnio total de um povo.

A histria maior

Para entender o contexto de A Promessa necessrio ento comentar sobre estes elementos histricos. O Imprio Otomano, antecessor da atual Repblica da Turquia, foi um dos mais poderosos do planeta em seu tempo, pois dominou boa parte do Oriente Mdio, leste da Europa e norte da frica. Durante sculos (o Imprio Otomano durou em torno de seiscentos anos) houve relativa estabilidade. Em 1453 os turcos otomanos tomaram Constantinopla, o que provocou a queda do Imprio Romano do Oriente, e mudaram seu nome para Istambul. Os projetos de expanso imperialista continuam, e os otomanos dirigiram sua ateno para a Europa, mas foram derrotados pelos austracos no sculo XVIII. Todavia, no sculo seguinte os turcos travam, e vencem a Guerra da Crimia, contra os russos . O apoio dos ingleses e ses foi elemento chave na vitria turca. O vasto Imprio Otomano comea a ter dificuldades financeiras. Em tentativa de modernizao, aproxima-se da Alemanha, lutando ao lado desta na Primeira Guerra Mundial, contra os antigos aliados Frana e Inglaterra. A derrota da Alemanha lanou o pas em um buraco, s que arrastou a Turquia com ela.

Como comum acontecer em situaes assim, importante encontrar um bode expiatrio. Afinal, algum precisa receber a culpa dos problemas que o governo no consegue resolver. A bola da vez no caso foi a populao armnia, predominante crist, enquanto os turcos otomanos eram muulmanos. A Armnia, vale lembrar, tornou-se a primeira nao crist da histria. Antes que o Imprio Romano se tornasse oficialmente cristo, por decreto do Imperador Teodsio, no ano 380, a Armnia j o era, desde o ano 301. Desde ento todos os sobrenomes armnios so marcados pelo sufixo ian, que vem de Christian, isto , cristo. Nomes como Nercessian, Balabanian, Parsekian, Kuiumjian, Berberian, Andropian, e muitos, muitos outros, revelam origem armnia e crist.

A Armnia, que faz fronteira com a Turquia, pertencia ao Imprio Otomano durante os eventos retratados no filme A Promessa. Os armnios cristos foram apontados como inimigos do imprio, e, por isso, perseguidos. este o contexto histrico mais amplo do filme, sua histria maior.

A histria menor

A histria menor a do tringulo amoroso que envolve o armnio Michael (vivido pelo ator guatemalteco Oscar Isaac, que est a cara do brasileiro global Rodrigo Lombardi), que sonha em se formar em Medicina, a sofisticada Ana, que tambm armnia (a atriz franco-canadense Charlotte Le Bom), e o noivo dela, o jornalista norte-americano Chris (o ator ingls Christian Bale), enviado por seu jornal exatamente para cobrir os casos de violncia contra os armnios. Michael e Ana compartilham muita coisa por conta da origem cultural-religiosa comum, e no demora a que se envolvam. Entre encontros e desencontros, os trs fazem tudo que podem para denunciar as atrocidades e salvar quantos armnios conseguirem. O filme apresenta de maneira muito positiva, embora sem dar detalhes, o trabalho de uma determinada Misso Protestante, que se desdobrou na tentativa de salvar especialmente crianas armnias. No fim eles so ajudados por uma belonave sa, e h uma ponta do sempre timo Jean Reno, como o Almirante Fournet, que ordena uma misso de resgate de um grupo de crianas que estava sendo bombardeado por um peloto do exrcito turco.

O filme e a crtica

A narrativa algumas vezes um pouco arrastada, e o filme se perde entre ser documentrio e ser filme propriamente. Foi muito criticado por apresentar os turcos como malvados e os armnios como vtimas. Mas esta crtica no procede. No apenas no procede como no faz o menor sentido. Por exemplo, como pensar A lista de Schindler sem apresentar judeus como vtimas e nazistas alemes como cruis? O fato, que no h como negar, que houve sim uma tentativa de erradicao de uma minoria por esta ser responsvel pelo crime de no adotar a religio do grupo dominante.

Esta situao continua. O Daesh, ou Estado Islmico, como conhecido no Ocidente, tem massacrado milhares e milhares de cristos, coptas, assrios, siracos, e outros, no Oriente Mdio e norte da frica, cristos que esto naquelas regies desde os tempos do Novo Testamento. O que a ONU tem feito diante desta situao? O Boko Haram tem massacrado cristos na Nigria. Mas estes cristos so negros e pobres. No do tanto ibope como dariam se fossem europeus brancos secularizados.

A histria do cristianismo mostra episdios tristes em que a f crist organizada foi perseguidora cruel de minorias e dissidentes. Mas estes dias ficaram no ado, e no podem servir sequer de argumento em discusses do tipo mas os cristos fizeram as Cruzadas contra os rabes. Este tipo de argumentao circular no ajuda, nem leva ningum a lugar nenhum. J tem sido divulgado que o sculo XX testemunhou mais mrtires cristos que em todos os dezenove anteriores. E tudo indica que isto no diminuir nos prximos anos. Muito sangue ainda ser derramado, pelo crime de ser sangue pertencente a uma pessoa que professa a f em Jesus de Nazar.

Crticos de cinema secularizados no vero muito valor em um filme como A Promessa. Seja como for, o grande mrito deste filme de Terry George est em denunciar uma situao que existiu e existe. A Promessa como o menino que em sua ingenuidade aponta o dedo e no tem medo nem vergonha de dizer o que todos sabem, mas por convenincia no tm coragem de dizer: o rei est nu.

Nota
1. A Guerra da Crimia, entre russos e turcos, mencionada por Machado de Assis em seu delicioso conto Na Arca, parte de sua coletnea Papeis Avulsos, de 1882. No conto, Machado faz No profetizar a irrupo de uma guerra entre turcos e russos.

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